Vi, ouvi e não quis acreditar – Por Sandra Marques
Hoje foi o dia (19.01.2022) em que começaram os trabalhos de abate de pinheiros na floresta do nosso município, numa acção planeada que vai estender-te até 2026 e que destina ao corte muitos milhares de árvores. Ao todo, no período de tempo entre 2016 e 2026, são abrangidos por este plano 247 hectares de pinhal do nosso concelho (para que se tenha uma ideia, é o equivalente a quase 250 campos de futebol).
Este enorme pulmão verde, que se estende de Esmoriz até ao Torrão do Lameiro, é um património natural de valor inestimável. Para além de nos garantir a produção de oxigénio e a captação de carbono; para além de concentrar uma enorme biodiversidade de fauna e flora (quem não conhece, por exemplo, as nossas camarinhas?); é também crucial o seu papel na defesa da costa, ao proteger os solos do chamado perímetro dunar contra a erosão e ao defender a nossa faixa litoral contra as investidas de ventos e marés que, ao longo dos anos, têm resultado no avanço do mar, tantas vezes pondo em causa a segurança de pessoas e bens e fazendo temer pelo futuro da nossa costa.
Pois bem: vi, ouvi e não acreditei. Na passada segunda-feira, no exacto dia em que o escudo protector da floresta começou a vir abaixo, o presidente da Câmara Municipal de Ovar sacudiu culpas e obrigações nesta matéria, com uma publicação nas redes sociais em que remete a responsabilidade por este assalto às nossas matas para o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF), como se o município não tivesse autoridade sobre o seu próprio território nem tivesse, sequer, uma palavra a dizer. E, no dia em que isto aconteceu, pasme-se, vi também o presidente da Câmara a falar num noticiário da SIC, para pedir ao Estado mais investimento na defesa da nossa costa. E o mais inacreditável disto tudo: no preciso dia em que o vi descartar responsabilidades numa questão tão premente como a defesa da floresta municipal, também o ouvi dizer à SIC o seguinte: “Enquanto existirem aqui autarcas que defendem a sua terra e que não têm problema nenhum em extravasar a baliza das suas competências para defender as suas gentes e os seus territórios, isso não irá acontecer” (referindo-se à possibilidade do desaparecimento de várias praias de Ovar, que algumas previsões científicas temem poder vir a acontecer no prazo de cinco anos).
Ora então, pergunto, pois perguntar não ofende: será que ninguém mais se apercebe destas incoerências? Da total falta de lógica daquilo a que assistimos? Como pode alguém vir a público dizer que ‘não tem problemas em extravasar as suas competências’ num problem, no mesmo dia em que as descarta de um modo tão desapegado em relação a outro, tratando-se até de duas questões tão ligadas uma à outra (a preservação das florestas em zona dunar e a defesa da costa)? Como pode alguém dizer-se defensor das suas gentes e do seu território quando tão prontamente se demite da sua quota-parte de responsabilidade na gestão das matas municipais? (de resto, importa dizer que o proveito da exploração de resinas e das madeiras recairá, em grande parte, para os cofres da autarquia, pelo que esta não pode assim tão simplesmente alhear-se do assunto)
Mas, mais importante do que isso, pergunto o seguinte e, isto sim, devia ser cabalmente esclarecido aos munícipes: qual é exactamente a posição da Câmara Municipal de Ovar sobre este (agora tão controverso) Plano de Gestão Florestal do Perímetro das Dunas de Ovar? Sabendo-se que o ICNF não realiza este tipo de intervenção à revelia das autarquias, que entendimento têm, então, as nossas Câmara e Juntas sobre este plano de gestão florestal: É irreversível? Será realmente necessária e adequada a sua execução plena, tendo em conta a dimensão considerável das áreas abrangidas, a relevância da localização destes pinhais e o papel que ao longo de séculos a floresta tem desempenhado na protecção do nosso território?
Tenho discordado algumas vezes da forma como o município de Ovar vem sendo gerido, e tenho sido também muito vocal nas críticas e nas questões que me causam algum descontentamento. Por causa dessa minha propensão para intervir – de que não abdico – tenho sido censurada muitas vezes, e por muita gente. Mas esta é uma questão tão fundamental, e tem suscitado tão grande celeuma, que não há como calá-la ou desvalorizá-la. Quantos cidadãos terão de se pronunciar; quantos mais terão de expressar a sua inquietação (ou indignação); quantos mais terão de exigir um esclarecimento à Câmara Municipal, para que a autarquia finalmente se digne, também neste assunto, “extravasar as suas competências” e actuar pela defesa do interesse legítimo de tantos cidadãos, ou seja, pela conservação deste património natural que a todos pertence, e que é o nosso legado às gerações futuras?
Na tal reportagem da SIC – que surge em pleno período eleitoral e num inverno em que o mar, felizmente, até nos tem poupado – o presidente Malheiro mais uma vez se presta ao papel de pedinchar a intervenção do Estado para salvar as nossas praias, e diz ainda o seguinte: “Sem terem existido estas obras estruturais cá, estamos com uma fortíssima probabilidade de termos aqui um grande desastre”. Neste ponto, devo dizer que estamos realmente de acordo. Aliás, eu diria até mais: quando estiver consumado o Plano de Gestão Florestal das Dunas de Ovar do ICNF, esse desastre talvez já não seja só uma probabilidade, mas uma tragédia mais do que certa. Salve-se, pois, quem puder. Mas depois, no dia em que acordarmos para a realidade, com água pelos joelhos e o futuro dos nossos filhos seriamente comprometido, não digam que ninguém avisou, ou que ninguém teve a audácia de apontar o dedo à desfaçatez de quem nos (des)governa.
Sandra Marques, residente em Cortegaça