Transexual, ex-atleta do Esmoriz é candidata a deputada
Durante 27 anos, Tifanny Abreu ia morrendo aos poucos por dentro. Sentia-se uma mulher encarcerada no corpo de Rodrigo, um potente jogador brasileiro de voleibol, cuja carreira profissional na Europa não diminuía a dor que o consumia. Até que decidiu deixar tudo para ser, finalmente, uma mulher.
Rodrigo pensou que nunca mais voltaria a pisar os pavilhões, mas no ano passado tornou-se a primeira transexual a competir na Superliga feminina do seu país [principal divisão do Campeonato Brasileiro de Voleibol] e agora quer ser a primeira a ingressar na Câmara dos Deputados, em Brasília. O lema da sua campanha é “Por que não?”.
“Matei-me por dentro durante 27 anos”, conta Tifanny à AFP no terraço de um hotel de São Paulo, entre a campanha e um momento de lazer.
Nasceu homem, mas sentiu desde os primeiros anos da adolescência que era mulher. Jogou voleibol em Esmoriz e vários clubes europeus — Portugal, inclusive — e agora quer chegar até à Câmara dos Deputados. Aos 33 anos, Tifanny Pereira de Abreu regressou ao Brasil para jogar o seu desporto de sempre, mas quer fazer bem mais do que isso.
“Eu queria fazer essa transição desde que tinha 12, 13 anos porque desde criança já sabia que era uma mulher. Mas a nossa falta de informação, a falta de hospitais, a nossa falta de orientação… Muitas acabam por não aguentar a pressão da sociedade que tanto oprime e acabam por se suicidar”.
Tifanny sabe isso muito bem. Aguentou até 2012, quando a depressão chegou ao ponto de a asfixiar, altura em que decidiu libertar-se, embora isso a obrigasse a largar tudo. Naquela altura, era um atacante forte cujo talento o havia levado a jogar também fora do Brasil, em Portugal [Esmoriz em 2008-09], França, Espanha e Holanda.
“Deixei uma equipa onde era segundo melhor pontuador da liga [jogava no JTV Dero Zele-Berlare, da segunda divisão belga] para começar uma transição. Eu não podia continuar a viver naquele corpo, não podia mostrar que era um homem, quando eu era uma mulher. Já não aguentava sentir vergonha de mim mesma”, conta a agora jogadora do Bauru, clube do interior de São Paulo.
Submeteu-se à sua primeira operação, após meses a tomar hormonas. Depois disso, viriam mais cirurgias — a última das quais em maio, em Espanha, para afinar as suas formas — que a própria vive como uma vitória.
“Bomba”
Foi um trilho difícil, que teve que percorrer sozinha, mas que motivou a sua entrada na política. Há alguns meses nem sequer sabia o que era o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), poderoso partido de centro-direita pelo qual se candidata a deputada.
Prestes a completar 34 anos e profundamente religiosa, sente que a sua experiência pode ajudar o país onde morrem mais transexuais no mundo, segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), que contabilizou 179 mortes em 2017.
“Quando recebi a proposta do Brasil, para vir para cá, muita gente me falava para não vir porque o Brasil é um país que discrimina muito, um país que mata, mas graças a Deus nós estamos a mudar, e a mudar para melhor”.
O seu regresso, contudo, foi uma “bomba”.
Depois de dez anos na Europa, o Bauru contratou-a amparado na legislação do Comité Olímpico Internacional (COI), que permite que atletas transexuais participem nas ligas femininas se sua testosterona estiver abaixo de 10 ng/L. A de Tifanny, após anos de tratamento, estava. E ela aceitou o desafio.
A chegada ao voleibol feminino foi acompanhada por várias denúncias sobre as supostas vantagens da imponente jogadora de 1,92 m. Mas Tifanny — que tem 23.200 seguidores no Instagram — nunca hesitou e até expressou o seu desejo de ser convocada para a Seleção.
“Se estou protegida pela lei, por que me iria preocupar com aquilo que as pessoas dizem?”, questiona, afirmando sentir-se como Neymar, criticado pela inveja.
Após a sua estreia, não demorou a bater o recorde de pontos numa partida da Superliga (39, igualado depois).
“Sempre fui muito boa pontuadora, mas agora a força é de uma mulher, não de um homem. Se eu tivesse a força de antes, não faria 30 pontos, mas 6.000”, justifica.
“Pelo amor de Deus!”
Parte da comunidade LGBT ainda não percebe por que se filiou no MDB — partido de reconhecidos políticos conservadores, como o presidente Michel Temer — para concorrer às eleições de 7 de outubro.
Tifanny Abreu explica que o regresso ao Brasil foi facilitado pelo Bauru, uma equipa financiada pela federação da indústria, com forte influência do MDB.
“Eu não tenho essa coisa contra partidos, tenho com pessoas. Fui incluída e quero incluir; se quero inclusão, tenho que incluir”, argumenta.
Tifanny é das poucas que não pertence a um partido de esquerda entre as 53 candidatas transexuais — número nove vezes superior do que o registado há quatro anos — que concorrem nestas eleições.
No entanto, sabe que se chegar a Brasília, um universo tradicionalmente pouco diverso e machista, não terá a vida facilitada. Todavia, garante que não sente medo, pois conta com o apoio da mãe, dona Amália, que exigiu somente uma coisa para dar a sua bênção.
“Pelo amor de Deus! Não roubes o povo como esses políticos que nos causaram tantos problemas”.
E Tifanny deu a sua palavra em como não o faria.
Quase 150 milhões de brasileiros escolhem em outubro, além do próximo Presidente, 27 governadores, 54 membros da câmara alta do Parlamento e 513 membros da câmara baixa, bem como centenas de membros das câmaras estaduais.
Texto: MadreMedia / AFP
Foto: AFP Photo / Nelson Almeida