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Rodrigo Areias sonha a Ria nas flores de Raul Brandão

“A Pedra Sonha Dar Flor”, filme do cineasta Rodrigo Areias que chega hoje aos cinemas, tem por base o livro “A Morte do Palhaço e o Mistério da Árvore”, de Raul Brandão. Muito mais do que apenas adaptação, vive da panóplia criativa do escritor do século XX que, no seu tempo e vida, descobriu a Ria, enquanto lugar de “conchego e sol”.

A Pedra Sonha Dar Flor, drama intemporal, vividi num Portugal do passado que é tão deste presente. Na Ribeira de Ovar filmaram-se cenas de A Morte do Palhaço, mas o filme é um medley da literatura de Brandão.

A terra vareira já tinha conquistado o autor no livro “Os Pescadores” que é, sem dúvida, o mais popular na importante obra de Raul Brandão. Neste livro, que a todos os títulos poderemos considerar como verdadeiramente singular, o autor dá-nos um fresco das gentes que têm no mar a sua vida, um fresco carregado de empatia – não fosse Raul Brandão, como o próprio afirma, “filho e neto de pescadores”.

Raul Brandão nasceu na Foz do Douro, Porto, a 12 de março de 1867, e morreu em Lisboa a 5 de dezembro de 1930. Militar de 1888 a 1911, quando se reformou do posto de capitão, foi ao jornalismo e à literatura que dedicou a sua vida, escrevendo livros, como Húmus, a sua obra-prima, ou peças de teatro como O Gebo e a Sombra, que impressionaram várias gerações até aos nossos dias.

Sucessivas gerações têm amado “Os Pescadores”, livro que permanece como um monumento da Literatura Portuguesa. Nesta obra, o autor oferece-nos belas telas ricas de cor, de luz, dos vários elementos colhidos na natureza.

O entardecer nas suas várias cambiantes, conforme o lugar e o tempo, é descrito em pinceladas fortes com verbos no presente – a ação em decurso e com o subjetivismo do autor arrastado pelo sonho e transpor para as telas, que sugere, a tragédia de um poente tempestuoso à beira-mar que é sempre temível para os pescadores.

Além de belos quadros paisagísticos, também nos oferece sugestivos retratos – o do faroleiro, a velha da Foz do Douro, a sanjoaneira, a mulher da Afurada, de Mira “feia mas esbelta (que) tem ar grave e senhoril quase sempre”, a heroica Ti Ana Arneira da Gafanha, a mulher da Murtosa “baixa e atarracada”, a de Ovar “delicada e forte, alta e bem proporcionada, cheia de predicados domésticos e morais”, a poveira “a bem dizer – um homem”, a Rata da Foz. É evidente a simpatia de Raul Brandão pela sua dolorosa vida difícil, de trabalho, de explorados.

Cem anos depois é reconfortante ler este conjunto de crónicas que retratam a vida difícil dos pescadores portugueses, desde o [Minho ao Algarve, detendo-se nalgumas comunidades piscatórias como Caminha, Póvoa de Varzim, Leixões, Murtosa, Mira, Nazaré, Peniche, Sesimbra e Olhão, entre outras.

A Ria também lhe mereceu a atenção: “É um enorme pólipo com os braços estendidos pelo interior desde Ovar até Mira”.

No capítulo “24 de Julho”, Raul Brandão declara:
“Há três dias que ando metido na ria, com a barba por fazer, sujo como um ladrão de estrada, e fora de toda a realidade. Afigura-se-me que vivo num país estranho – amplidão, água e sonho. Pelo areal os palheiros da Costa Nova, de S. Jacinto e da Torreira… Que me importa! Estonteado, encharcado de azul, cheio de sol e de luz, esqueci o passado e esqueci o presente. A vida é navegar na ria, comer da caldeirada de enguia e tainha, que os homens cozinham à proa, aproveitando-lhes entre as tripas a marsola para lhe dar mais gosto. £ dormir no barco, abicar aos areais e vogar sempre, sentindo a pancada das águas que fogem em tinta cobalto de um lado, em tinta cinzento do outro. É sair desta amplidão para a descoberta do charco, do canal, da gota de água,
dos sítios escondidos e ignorados. É assistir à transformação das águas e navegar à vela ao pé das casas e no interior das casas.

Distingo um fundo muito roxo – o recorte dos montes. Aqui a ria, mais larga, aumenta ainda e divide-se, de um lado até Ovar, do outro até Salreu. É além, é além…
Casinhas num reprego da encosta, onde apetece viver, perdidas no mundo e esquecidas do mundo. Mesmo à beira de água e reflectida na água, a Murtosa, aureolada de oiro: algumas casas brancas reluzindo, algumas árvores muito verdes em contraste e um canalzinho de abrigo para os barcos estranhos, com o leme estrambótico atravessado por um pau. Aconchego e sol. A fantástica esquadrilha desdobra-se na água que estremece, menos em certos veios que ficam lisos de propósito para reflectirem os mastros num sarrabiobisco até ao fundo”.

As Mulheres

A mulher da Murtosa, dizem os entendidos, não se confunde com a de Ílhavo: é baixa e atarracada, e a de Ovar delicada e forte, alta e bem proporcionada, cheia de predicados domésticos e morais. As de Ílhavo passam por as mais lindas, pelo sorriso que encanta, pelo olhar, e pela magia que exalam.

 

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