OpiniãoPrimeira Vista
Rebeldes da Fé: A Expansão dos Franciscanos em Portugal nos Séculos XIV e XV – Por Paulo Freitas do Amaral

Nos finais da Idade Média, Portugal assistiu a uma verdadeira vaga franciscana, uma expansão que representou uma reação ao espírito monástico tradicional, muito marcado no nosso país pela influência dos Cistercienses, e, de forma mais geral, à crescente burocratização da hierarquia eclesiástica.
A chegada dos franciscanos não foi pacífica: o clero instalado reagiu, em parte por rivalidade no acesso às esmolas dos fiéis, mas também devido a tensões mais profundas. No entanto, o Papa reconheceu nos Frades Menores um poderoso instrumento de renovação da fé, capaz de dinamizar o povo e responder a necessidades que a estrutura pesada dos bispos e as velhas ordens encerradas nos claustros já não conseguiam satisfazer. Durante os séculos XIV e XV, a influência franciscana continuou a crescer, atingindo todos os níveis da sociedade portuguesa.
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Já D. Dinis escolhera para seu confessor, e depois bispo do Porto, o franciscano Frei Estêvão, em 1320.
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A Rainha Santa Isabel, viúva, entrou na Ordem Terceira de São Francisco.
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D. João I teve como confessor Frei Afonso de Alprão.
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D. Fernando, à hora da morte, pediu para ser enterrado com o hábito franciscano.
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A Rainha D. Filipa de Lencastre confiou o seu espírito ao franciscano inglês D. Aimaro.
Os filhos do casal real continuaram a tradição:
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Frei Gil Lobo foi confessor de D. Duarte e de D. Afonso V.
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O infante D. Henrique surge como interlocutor no Relógio da Fé de Frei André do Prado, um tratado sobre a fé cristã escrito ainda durante a vida do infante.
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O infante D. Fernando, mártir de Tânger, legou a sua biblioteca aos franciscanos de Leiria.
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Frei Afonso Falcão escreveu cartas de consciência para D. Afonso V.
O próprio D. Afonso V, nos últimos anos da vida, recolheu-se entre os franciscanos do convento de Varatojo, fundado por sua vontade, e D. João II teve como confessor Frei João da Póvoa, conhecido pelo seu rigoroso apego à pobreza.
Nas grandes crises nacionais, os franciscanos marcaram presença:
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Durante a guerra civil de 1383-1385, vemos-nos ao lado dos burgueses do Porto e do povo miúdo de Estremoz, a encabeçar motins, a intermediar conspirações a favor do Mestre de Avis, e até envolvidos numa tentativa de atentado contra D. João de Castela, organizada por Leonor Teles.
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Foram também voz ativa contra o interdito papal que proibia o enterro dos mortos nas igrejas.
Ainda antes, no reinado de D. Fernando, frades franciscanos incitaram a resistência popular contra os invasores castelhanos, tanto em Santarém como em Lisboa.
Pregaram sermões de ação de graças após o levantamento do cerco de Lisboa e a vitória de Aljubarrota.
O próprio anúncio da conquista de Ceuta teve a sua força inicial num sermão franciscano.
O próprio anúncio da conquista de Ceuta teve a sua força inicial num sermão franciscano.
Estes factos revelam a profunda e constante presença dos franciscanos na vida pública portuguesa. Desde o início, o movimento franciscano oscilou entre a fidelidade ao ideal de pobreza absoluta de São Francisco e as exigências práticas de uma ordem organizada.
São Francisco nunca desejou criar uma ordem estruturada; sonhava com uma confraria de homens unidos pela “santa pobreza”, vivendo do trabalho ou da esmola, sem possuir nada.
Os primeiros franciscanos abrigavam-se em cabanas ou ruínas, vivendo em pequenos grupos quase eremíticos.
Os primeiros franciscanos abrigavam-se em cabanas ou ruínas, vivendo em pequenos grupos quase eremíticos.
Com o crescimento do movimento, tornava-se impossível manter este modelo sem compromissos. A construção de conventos e igrejas levou a tensões internas. Frei Elias, que iniciou a construção da Basílica de Assis recorrendo a caixas de esmolas, personificou essa primeira cisão, enfrentando a oposição dos mais fiéis à visão de São Francisco, como Frei Leão.
O compromisso papal permitia à Ordem utilizar bens, mas não ser formalmente sua proprietária — pertenciam à Santa Sé, administrados por procuradores.
Ainda assim, a divisão entre Zeladores (ou Espirituais) e Conventuais tornou-se inevitável.
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São Boaventura tentou reconciliá-los através da “Via Média”, baseada num uso pobre, mas não inexistente, dos bens.
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Após a sua morte, a tensão reavivou-se e deu origem aos Fraticelli e, mais tarde, aos Observantes e Capuchinhos.
Também em Portugal sentimos os ecos desta luta.
A reforma observante chegou por volta de 1392, trazida por frades galegos e asturianos, como Frei Diogo Arias e Frei Gonçalo Marim.
Em Alenquer, tentaram implementar uma vida mais austera, vendendo os objetos preciosos do convento e aproximando-se do ideal de São Francisco, apesar da oposição interna. Fundaram novos conventos em locais isolados, como o da Carnota, apoiado por D. João I.
Em Alenquer, tentaram implementar uma vida mais austera, vendendo os objetos preciosos do convento e aproximando-se do ideal de São Francisco, apesar da oposição interna. Fundaram novos conventos em locais isolados, como o da Carnota, apoiado por D. João I.
Estatutos do final do século XV, como os aprovados em Alenquer em 1486, insistem na prática do trabalho manual: cavar hortas, lavar roupa, fabricar objetos — exemplos vivos de frades como Frei João da Montanha, serralheiro, e Frei João da Comenda, construtor de relógios.
Em Portugal, o franciscanismo manteve viva a corrente espiritual mais exigente:
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A Crónica dos 24 Generais (tradução portuguesa do século XV) toma partido claro pelos zeladores e espirituais.
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Frei Álvaro Pais, natural de Santarém ou da Galiza, escreve em De statu et planctu ecclesiae uma crítica feroz à corrupção da Igreja, vendo nos franciscanos a esperança da renovação espiritual.
Também encontramos sinais de messianismo, inspirados nas visões de Joaquim de Fiore:
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Frei Amadeu da Silva, autor do Apocalipsis Nova, anunciava a chegada de um novo tempo para a Igreja e o mundo, dominado pelo espírito de São Francisco.
Estas ideias proféticas, ainda que nem sempre alinhadas com a ortodoxia romana, deixaram raízes profundas.
Através da tradução dos poemas livres e apaixonados de Jacopone da Todi por Frei Marcos de Lisboa, a segunda metade do século XVI ainda respirava este espírito franciscano original: um cristianismo simples, pobre e profundamente livre.
Os franciscanos, mais do que apenas monges de claustro, foram protagonistas de uma revolução espiritual que atravessou séculos — e que ainda hoje ressoa discretamente na alma portuguesa.
