Palíndromo – Henrique Gomes
Os primeiros já tinham atravessado a Praça e aproximavam-se, em sentido proibido, celeremente do ex. Espírito Santo.
Outros, mais atrasados, abordam agora a pequena rampa que dá acesso à Praça da República. Também em sentido proibido fizeram toda a zona da ”ribes”. Passam no primeiro ponto de abastecimento onde esponjas e pequenas garrafas de água são distribuídas aos sedentos participantes da Meia-Maratona. Eu ajudo na entrega das garrafas.
Finda a primeira rampa, os atletas curvam subtilmente à esquerda, como que evitando o Espírito Santo apregoado na habitual eucaristia domingueira de Santo António. Com esta manobra aproximam-se da montra da moderna florista que sucedeu ao “Ligeira” da garagem de motorizadas e bicicletas.
Estamos com o grosso do pelotão intermédio. Extenso grupo, quase sem espaços entre atletas, que se alonga e renova constantemente. Parece não ter fim esta coluna compacta, colorida e bem-disposta. E as mulheres em número considerável! Não sei quem aprovou o tamanho dos calções delas, mas não desgosto dos modelos exibidos. O tecido gasto não é muito e, supostamente, o reduzido calção facilita o desempenho das atletas.
O empedrado da Praça vai ficando colorido. Esponjas, tampas e garrafas são deixadas cair logo após os vários pontos de abastecimento por aqui radicados.
Diligentemente, logo aparece quem recolha tampas e espojas. Restam as garrafas que serão apanhadas mais tarde.
Finalmente o pelotão terminou de passar. Surgem agora atletas sozinhos ou em pequenos grupos. Lentamente, quase a passo, eis que se abeira de mim um veterano atleta.
Capicua no dorsal, palíndromo na prestação – corre tão devagar que parece correr em sentido inverso. Foi ultrapassado por quase todos os concorrentes, ficando muito para trás.
Mas nem sempre foi assim. Perto de mim, parado, enceta um pausado diálogo:
– Sabe, agora sou dos últimos mas já fui dos primeiros!
Tenho direito a uma explicação dada com forte acentuação beirã, arrisco mesmo a dizer lafonense. Cada palavra é como que soprada, prolongada em alguns sons- quase que assobia, falando.
E de novo, humildemente, como que pedindo desculpa por demorar tanto tempo a chegar até nós, lá continua ele:
-Sabe, amanhã, eu faço oitenta anos. Venho cá todos os anos. Espero voltar para o ano.
Atónito, abro duas garrafas de água e brindo com este magnífico exemplar de longevidade.
– Saúde!
Henrique Gomes
Ovar