Ovar sem tema! – Ricardo Alves Lopes
Ai, Ovar, Ovar, hoje não me apetece nada escrever-te. Estou numa semana de loucos, cheio de trabalhos, com a cabeça a mil e subterfugiado nuns pensamentos que nem sei se me fazem bem. Estou estranho. E todos estamos, por vezes, não é?
Não quero que te sintas especial de te escrever uma carta, pois faço-o apenas – perdoa-me – por preguiça de pensar num assunto que seja verdadeiramente interessante para todas as pessoas sobre ti. Estranha-me que nunca te tenhas chateado comigo. Tu, que há tantos anos me mimas, com amigos, paisagens e até algumas actividades, vês-me agora, desde há uns anos para cá, a escrever sobre ti todas as semanas, sem nunca te perguntar nada. É egoísmo. As opiniões, na sua generalidade, são egoístas. São o aposento das nossas ideias.
Eu defendo as minhas coisas, outros defendem as deles, e andamos neste diálogo imaginário em que tu não és ninguém, só uma placa que abre a cidade na Nacional ou na A29. Mas tu és mais do que isso, não és?
És a cidade que não tem o nome replicado em mais lugar nenhum do mundo e que, mesmo nos dicionários, apenas apareces no português para falar da forma como os peixes desovam, algo que honra tanto a nossa tradição xávega, a nossa vontade imensa de criar odes marítimas. Ao mesmo tempo que os brasileiros, sempre marotos na articulação das frases, te fazem como uma ovação.
Para eles, ovar é aplaudir. E eu aplaudo-te, acredita que aplaudo, mesmo nos dias mais cinzelados pelas polémicas tão corriqueiras que nos povoam. E esse nome, que perdura há séculos e séculos, foi-te reconhecido em foral pelo D. Manuel I de Portugal, mas já muito antes tu eras cidade, da estação de caminhos-de-ferro para cima. O marera mais extenso e a ria uma miragem, mas tu já eras cidade, ali pelos lados de Cabanões – dizem. Mas não te esgotaste aí, fizeste-te terra de pescadores, cresceste para as terras em redor, mas ainda deixaste aparecer a ria.
A ria onde hoje eu gosto de ler os meus livros e onde, um dia, pequenino como um catraio tem que ser, chapinei as águas já um pouco enlameadas do caudal, só para provocar os meus pais e usar aquele escorrega que o Areinho nos oferecia. Nunca fui de saudosismos, mas nunca esqueci o passado. Aliás, quando mais penso que o deslembrei, é quanto tu mais me atacas. Estás em todo o meu passado e eu fico orgulhoso de pertencer ao teu presente. Sonho deixar-te uma marca que vá além da lápide ao lado da igreja matriz ou no cemitério de São João de Ovar, onde jazem uma bisavó e um avô que tanto me dizem desse mesmo passado onde entras. A minha bisavó ajudou-me a crescer, tu ajudaste-a a ter sítio onde me fazer crescer. Qual de vocês é mais importante?
Nem sei dizer, mas o texto já vai longo e o meu propósito já está cumprido. Não escrevi nada de mais, novidade alguma ou uma obra de arte como as Pupilas do Senhor Reitor, ou as primeiras resenhas d’A Morgadinha dos Canaviais, mas, olha, dei um soco no marasmo da folha branca como o Santa Camarão daria num adversário. Consegui. (Foto de Miguel Oliveira)
Ricardo Alves Lopes (Ral)
www.ricardoalopes.com
http://tempestadideias.wordpress.com