“O Lameirense”, o último barco moliceiro do Torrão do Lameiro
Dizem que foi o mais belo barco moliceiro que a Ria viu. “O Lameirense”, tal como o próprio nome indica, foi o último moliceiro do Torrão do Lameiro, lugar de Ovar situado no extremo norte da Ria de Aveiro. Era também um barco pujante, campeão de regatas e decorado com painéis de proa originais, divertidos e vencedores de concursos. Hoje nada mais é do que uma memória, apesar de tudo viva no lugar que o viu nascer e mais tarde partir, já com o casco meio apodrecido.
No “Torrão” ainda se fala do ano de 2006 em que ganhou tudo o que havia para ganhar. Graças a um painel inspirado nas Festas da Ria, o “Lameirense” ganhou o primeiro lugar no concurso de painéis de moliceiros, em Aveiro. O barco, propriedade de Domingos Valente e José Gonçalves, tinha sido pintado especialmente para participar no concurso e na regata desse ano que também venceu.
“Foi, muito provavelmente, o mais rápido moliceiro que um dia sulcou as águas da Ria de Aveiro”, garante António Valente, que andou nele vezes sem conta, com o pai e o irmão. “Quando o meu irmão o vendeu, há cerca de dez anos, há muito tempo que não havia apoios para quem tinha um moliceiro”, recorda com alguma tristeza.
Assim, a família Valente despediu-se de “O Lameirense” e vendeu-o para Aveiro, onde passou a fazer passeios turísticos. “Já não havia água, não havia moliço, não adiantava ter um barco moliceiro parado na Ria com custos elevados de manutenção”.
Oriundo de uma família que sempre extraiu sustento da laguna, António Valente esforça-se por encontrar uma explicação. “Depois da primeira dragagem, acabaram-se os moliceiros em Ovar. Foi tudo mal feito e deixou de haver condições para os barcos navegarem. É só lodo”.
Nos últimos anos, “O Lameirense” já andava a fazer apenas turismo no canal de Ovar. António Valente, ele próprio lameirense que mantém residência no Torrão do Lameiro, recorda que o mítico barco “embarcava as pessoas no Carregal, transportava-as até à Torreira e às vezes a São Jacinto”. Alguns programas turísticos incluíam refeição na Pousada da Ria e tinham alguma procura. “Apesar de gostar disto, o meu irmão Domingos manteve sempre o emprego, porque quando a maré descia, o barco assapava na lama e apodrecia com o calor”.
Foi então que decidiu vender “O Lameirense” para Aveiro. “A manutenção era muito cara e não havia apoios nenhuns”, conta António, enquanto fala com o irmão Domingos pelo telefone para confirmar os contornos do desfecho difícil.
O problema todo foi o moliço ter desaparecido desta região ribeirinha. Faz o diagnóstico: “Foi desaparecendo e nunca mais houve moliço, por isso, a única hipótese era o turismo fora daqui porque cá também deixou de haver espelho de água para que isso fosse viável”.
Sem água, não há barco
Para ser rentável, o barco tinha de navegar na baixa-mar, e sem água, isso não era possível. “Depois de terem dragado o centro do canal, era preciso dragar para dentro”. “Nunca o fizeram, mais cedo ou mais tarde vão ter de fazer isso”, defende António Valente que não poupa críticas à recente dragagem “que deixou tudo na mesma”.
Actualmente, com 68 anos de idade, António lembra-se de andar na Ria a apanhar moliço. “Eu andei muitos anos com o meu pai a apnhar moliço, quando era mais jovem” e lembra-se que havia muitos barcos moliceiros por ali. “Agora só há na Murtosa e talvez em Pardilhó, Estarreja”.
Diz-nos que chegou a ver uma dúzia de barcos moliceiros à vela a trabalhar no Torrão do Lameiro. “Vendia-se moliço para São João da Madeira, Santa Maria da Feira, e por aí fora, porque era adubo natural de grande qualidade”. A família Valente recebia encomendas durante a designada “maré do moliço” e chegavam a vir até “ao Torrão” barcos de São João de Loure, para o comprar de modo a usá-lo como fertilizante na agricultura.
Conscientes da riqueza que o moliço gerava para a região, “chegou a impor-se um período de defeso para o moliço criar e recuperar da época da apanha”. O que é certo, frisa António, é que, “enquanto houve moliço a Ria esteve sempre navegável”. O fim do moliço, apressou o fim da ria navegável nesta parte do canal e, por consequência, o fim dos barcos moliceiros em Ovar”.
Um a um, os moliceiros vão deixando de ser os barcos da Ria, para se transformarem nos barcos do turismo do canal de aveiro. É aqui que “O Lameirense” ainda pode ser admirado, carregando turistas, orgulhoso das suas glórias passadas.
A mulher de António Valente, Rosa, estava ali a ouvir a conversa e decidiu intervir para lembrar que ainda “há aquele que está exposto na rotunda do Carregal, outro no interior do Atlantic Park e um que chegou a estar no lago da empresa Toyota”. Inaugurado com pompa e circunstância em abril de 2017, o barco moliceiro “Fonte Nova”, que se encontra na referida rotunda, tem a madeira praticamente podre e não deverá ser passível de recuoeração. A Câmara Municipal de Ovar informou que “planeia uma intervenção na rotunda, na qual pretende manter o espírito de homenagem ao barco moliceiro”. A ideia de melhoria daquela zona está “em projecto e estudo”. Rosa lamenta que as artes tradicionais da região se estingam, ela que chegou a ter uma máquina de lavar cenouras “porque produzíamos muito e vendiamos muitos quilos para fora, mas agora os espanhóis vendem-na a preços que não conseguimos acompanhar”. Mas não termina sem demonstrar como a terra do Torrão do Lameiro é boa para a agricultura. “Aqui dá tudo, desde cenouras a melão, é tudo bom e nunca falta água”.