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No Carnaval de Ovar, o dominó faz sempre parte do jogo

Sob um manto de sarja ou popelina preta e com uma máscara que esconde o rosto por baixo do capuz, não se percebe quem ali vai. As vozes também se alteram, num falsete estridente a lembrar gralhas e bruxas. Se quem veste esse capote não quiser, portanto, nunca se descobre a identidade de quem assim se passeia pelas várias festas do Carnaval de Ovar.

Aquela indumentária específica chama-se “dominó” e lembra uma capa académica como as de Coimbra, mas tem uma cobertura extra pelos ombros, para ajudar a resistir ao frio junto às águas do Cáster, e também
inclui um carapuço, sob o qual às vezes há ainda um lenço em torno do cabelo, para que, se os mais afoitos
puxarem pelo capuz, nem assim madeixas ou caracóis distintivos permitam identificar o farsante.

Luvas também ajudam ao disfarce e, para defesa de abusos e insistências, o complemento é uma colher de pau
decorada por fitas e guizos. Entre piadas a vizinhos que não as identificam e boquinhas como “vai
para casa que o teu homem já aqui passou agarrado a outra”, cinco amigas do grupo informal Zucatrucas
aproveitam a cobertura negra para deixarem de ser as senhoras bem-comportadinhas do resto do ano.

Carmo Seixas usa o mesmo dominó há 56 anos, aponta com orgulho as meias-luas e losangos com que a mãe
o decorou à mão e, agora que a idade lhe permite confissões sem culpas, recorda como o traje típico de Ovar
sempre lhe permitiu mais liberdade e maior ousadia: “Se havia um rapaz de quem gostássemos, quando andáva-
mos assim vestidas, aproveitávamos para lhe dar um abraço e fazer umas festas, sem ele saber quem éramos.”
Pelo menos desde 1895 que o dominó faz assim parte da cultura carnavalesca vareira — bem antes de se tornarem comuns os espessos fatos de carpélio, um tecido felpudo, com que famílias inteiras passaram a vestir-se, num mesmíssimo modelo, desde que descobriram nesse pêlo sintético uma forma de se manterem
quentes durante os longos corsos.

Dizem que o gabão negro de Ovar foi importado de Veneza, onde a indumentária se disseminou a partir de
uma das personagens clássicas da Commedia Dell’Arte, mas isso pouca importa a quem o enverga agora. O que as amigas de dominó sabem é que os seus pais já usavam esse traje nos tempos do chamado “Carnaval Sujo”, que, antes de a festa começar a ter uma organização formal, em 1952, tinha como ponto alto uma batalha de farinha, ovos, fuligem e a afins junto à câmara municipal. Sobre o passado, misturam-se memórias de várias gerações: as do tempo em que cada bairro definia um tema para decorar carros bem diferentes dos veículos alegóricos que agora animam os desfiles; as do trabalho manual a fazer brindes para atirar ao povo que assistia à festa, como leques de papel ou bonequinhas de lã; as da ronda pelos cafés da terra, a provocar com
piadas quem por lá andasse.

Outras fantasias
“Às vezes corria mal, porque vinha para cá quem não percebe que no Carnaval ninguém pode levar a mal.
Chegaram a dar-me uma bofetada que até me partiu a máscara”, recorda Manuela Marques, nos seus 71
anos. Mas antes que revelasse qual foia piada que motivou a agressão, já ela e Carmo se perdiam com Helena
Andrade, Isabel Santos e Marcelina Balixa em piropos e gritinhos agudos a quem abrandava o passo para as
apreciar nos seus cinco dominós.

Todas concordam, entretanto, que o Entrudo vareiro, tão diferente que é agora, se tornou uma organização
complexa e eficiente, “uma coisa com categoria, de qualidade”. A faceta pela qual o evento se tornou mais conhecido nas últimas décadas é, no entanto, aquele misto de humor popular e cultura brasileira que marca os grandes corsos de sábado, domingo e Terça-Feira Gorda. No sábado, a Avenida Francisco Sá Carneiro é tomada pelas quatro escolas de samba do concelho, com centenas de mulheres em trajes de estilo carioca, curtos e semi-despidos, ao som de música com pronúncia do Brasil; no domingo e terça, a mesma rua abre-se a mais 20 grupos, para um espectáculo com cerca de 2000 figurantes, uns ainda em guarda-roupa a lembrar os trópicos e a maioria com outras fantasias, adereços e carros alegóricos de encher o olho, todos criados ao longo de meses em horário pós-laboral e pagos sobretudo a expensas dos próprios foliões, com um subsídio complementar da autarquia.

Sandra, Sameiro e Mariana Pereira são todas da mesma família, e, com Marisa Couto e Bárbara Malta, percorrem algumas ruas da cidade nos fatos com que desfilaram pelo grupo de passerelle “Levados do Diabo” em diferentes edições do Carnaval — sem denunciar nada da toilette de 2025, que só se revelará ao público no cortejo do dia 2 de Março. Quando falam dos trajes que acumularam ao longos  dos anos, agitam-se-lhes os folhos e brilhos no entusiasmo com que admitem que têm fatos por todo o lado: nos armários de casa, em malas de viagem, no sótão, nas garagens, na casa das mães, das tias, das primas.
“Guardamos todos, mas também os emprestamos, se nos pedirem”, diz Mariana. “Se for a uma pessoa que
tenha cuidado com eles e mereça”, visa logo Bárbara. Seja Sameiro com uma fantasia de pirata, a Sandra com o seu chapéu de vime e botões, a Mariana com corações a despontar do ombro, a Marisa com as suas costas de plumas altas ou a Bárbara com um turbante e ceptro afros, todas concordam que o melhor conselho para novatos no Carnaval vareiro é que não prescindam de um disfarce. “Nos corsos não tanto, mas na Noite Mágica, quem não vier fantasiado até se sente mal”, dizem todas, umas a completar o raciocínio das outras.

“Pode ser uma coisa simples, só uma peruca, um chapéu ou uns óculos esquisitos, mas é melhor que tragam mesmo algum adereço ou o peçam nos bares, que às vezes eles também têm alguns para oferecer”, recomendam.

Se agora essas cinco levadas do diabo vão quase todas as noites trabalhar e ensaiar para a sede que o respectivo grupo tem na Aldeia do Carnaval, cansaço não é coisa que lhes assista até quarta-feira, 5 de Março. No domingo, se não houver chuva que cancele o evento dessa tarde, vão desfilar as tais seis horas ao relento e garantem que não há frio ou céu nublado que lhes afecte a boa disposição. Já na terça-feira, faça chuva ou faça sol, o cortejo sai sempre, possivelmente já com alguns amassos no outfit devido à folia anterior, mas com a emoção acrescida que antecipa o dever cumprido. É, contudo, na Noite Mágica, de segunda para terça, que melhor se percebe porque é que o Entrudo de Ovar adoptou “Vitamina da Alegria” como slogan: “Vimos para a festa toda a noite e às cinco da manhã seguimos directas para o cabeleireiro, como se nada fosse”, antecipa Mariana, explicando que, antes dos grandes corsos, cada grupo tem sempre a sua própria “linha de montagem” para penteados e maquilhagem.

O brio é geral — e transversal a todas as idades, a todos os géneros, todas as categorias profissionais, todas as
fisionomias faciais e corporais. E na conversa entre as senhoras da passerelle e as do dominó, duas convicções são unânimes: a verbalizada por Bárbara é que os dias de festa rija “são muito bons, mas melhor ainda é tudo o que acontece antes disso”, nos meses de partilha comunitária em preparativos; e a expressa por Carmo, que já pagou “bem caro” para desfilar no Carnaval do Rio de Janeiro — é que, perante o seu congénere carioca, o Entrudo de Ovar “é muito melhor”.

Sem hesitar, justidica: além de mais espontâneo e natural porque menos submisso ao cronómetro e aos rigores
do júri, cada cortejo vareiro é uma manifestação de esmero. “A maioria das pessoas não tem noção porque só vê aquilo pela televisão, mas no Brasil os fatos são feitos sem jeito nenhum e usam muita cola para segurar os tecidos. Aqui a roupa é mais bem-feita, temos muito mais cuidado. Quem cá vier pode pôr a mão e verificar, que o fato não se desfaz”. (Implícito no convite, está outro conselho para estreantes: a comprovar com a mão, que o façam com jeitinho. Mesmo na feliz e contagiante adrenalina dos desfiles, toques inapropriados não deixarão
de estar sujeitos a outras bofetadas memoráveis).

Alexandra Couto

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