Mário Lisboa fotografou na Sibéria, sob 29 graus negativos
“Cauda de Dragão sob um céu de estrelas” é uma das 24 fotografias que Mário Lisboa tem expostas no Centro de Arte de Ovar, fruto de uma aventura fantástica no lago gelado da Sibéria, o Baikal. Todas elas são especiais, mas esta é-o mais porque reflecte de modo muito significativo as dificuldades impostas por um ambiente inóspito caracterizado por condições extremas.
“Para compor esta imagem tirei 200 fotografias, durante mais de duas horas, sob uma temperatura a rondar os 29 graus negativos”, revela o autor. “Todos os outros fotógrafos que estavam comigo foram embora, ora porque não aguentavam, ora porque achavam que o equipamento não ia funcionar com o frio. Mas eu fiquei”.
Esta resiliência está-lhe no sangue, pois descende de uma família que tem feito da fotografia um modo de vida há cinco gerações. A vida levou-o por outros ofícios e lugares, mas a paixão pela fotografia tem sido uma constante. “Lago Sagrado – Uma viagem por uma estrada profunda e gelada” (nome que deu à esposição) é, pois, pedir emprestado o olhar de Mário Lisboa e deixar-nos levar a um mundo gelado, “um local que tem tanto de belo como de potencial em conhecimento científico, que importa preservar e cuidar”.
À Sibéria pouca gente deste país foi. O vareiro Mário Lisboa teve essa coragem e trouxe consigo testemunhos que agora partilha. “Este é um dos grandes desertos gelados do planeta, lugares onde é quase impossível a sobrevivência humana”, explica. “É atrás disso que eu vou, porque a Sibéria sempre me esteve no pensamento, por ser um lugar que carrega uma atmosfera que exercia um certo fascínio sobre mim”.
A viagem foi pleaneada com antecedência e nem a ameaça de um vírus então desconhecido o desviou de rota. “A 20 de janeiro soubemos que a Rússia estava fechar as fronteiras terrestres e nós, com viagem para fevereiro, apanhamos um susto”. No dia marcado, “fomos até Moscovo num voo de 5,5 horas e de lá partimos para Irkutsk, na Sibéria, num voo de mais de 7,5 horas”.
Uma bandeira da URSS
Na bagagem, Mário e a mulher Carla Varanda levaram botas e casacos com aquecedores próprios para aguentar aquelas temperaturas, “porque levantavamo-nos sempre muito cedo para assistir ao nascer do sol e o trabalho só parava ao pôr-do-Sol”. Dali, seguiram para Listvianka, cidade que “ainda tem içada a antiga bandeira da URSS”. “Senti ali que o meu sonho estava finalmente a acontecer naquele momento, com a particularidade que não havia estrada, luz ou internet, havia um gerador que trabalhava apenas até às 23h para carregar baterias de computador, telemóveis e máquinas fotográficas”.
O Lago Baikal, que congelou no dia 12 de Janeiro, é uma verdadeira joia da natureza, um tesouro escondido que quebra todos os recordes: é o lago mais profundo do mundo, com 1.642 metros, mas também é o mais limpo, o mais antigo e com mais água: alberga 20% da água doce em estado líquido do mundo. Com 636 km de comprimento por 79 de largura, é um lugar mágico, com paisagens inesquecíveis, uma natureza incomparável e lendas extraordinárias. “É muito importante levar esta mensagem às crianças das escolas e às pessoas que se preocupam com o problema das alterações climáticas e do aquecimento global, porque até o Baikal está a sofrer com a acção do Homem”, alerta Mário Lisboa.
Anastasia Tsvetkova e Maxim Timofeyev, da Fundação que estuda o lago siberiano, com quem o fotógrafo ovarense travou conhecimento, têm em curso projectos de monitorização que estudam o ecossistema do Baikal há mais de 70 anos. O lago tem hoje uma pressão constante, quer industrial, quer turística, que as autoridades tentam controlar a todo o custo. O fotógrafo vareiro fala nos “incêndios gigantescos da Sibária que se acendem, apagam e reacendem à volta do Baikal”. Neste sentido, “a diferença de um grau centígrado tem uma importância muito grande no crescimento e desenvolvimento do plancton e das algas, pois o gelo deixa de ser transparente e impede a entrada do sol”. Em risco pode estar o golomyanka, espécie de peixe de que se alimenta a foca do lago, única foca de água doce do mundo e que as autoridades querem preservar a todo o custo.
O Lago Baikal tem 20 milhões de anos e “não serão 20, 30 ou 40 anos que o irão afectar. Nós vamos embora e ele fica”.
Fotografia eterniza o efémero
A abordagem que Mário Lisboa imprimiu ao trabalho que tem patente na eposição reflecte a sua preferência pelo abstracto, “um tipo de leitura que é o reconhecimento de figuras e outros fenómenos mentais que tento transmitir naquele instante para a fotografia”. No caso do Baikal, “eu sei que tudo desaparece e passa a existir apenas na nossa memória”. “Daí a importância de preservar a memória para a transmissão às novas gerações”, defende.
A expedição teve poucos apoios. “O meio é pequeno e não abundam os recursos, mas a pouco e pouco conseguimos reunir a verba necessária para fazer este trabalho que não tem objectivos de ganhar dinheiro”, explicando Mário Lisboa que o seu objectivo é “levar esta mensagem a todo o público interessado nas questões ambientais e no estudo dos habitats naturais”.
Além das fotografias portentosa, a exposição é complementada por documentário realizado por Carla Varanda, esposa de Mário que frisa ser este “um trabalho em conjunto, muito embora ela não estivesse muito inclinada em ir, mas acabou por ir e ainda bem porque gostou muito”. “Não contava com e o que vi e vivi superou tudo o que eu esperava”, afiança Mário Lisboa.
Fotografia no ADN
Mário Lisboa descende de uma família que tem feito da fotografia um modo de vida há cinco gerações. O seu bisavô, Ricardo Ribeiro fundou em 1892, em Ovar, um dos primeiros estúdios fotográficos em Portugal. Desde então, sempre no mesmo local, cinco gerações abraçaram essa arte até aos dias de hoje, com a curiosidade de serem mulheres as representantes das últimas três: Duas Matildes (avó e mãe de Mário) e a sobrinha Dalila que mantém a tradição familiar nos dias de hoje. “Ganhei os meus primeiros dinheiros com a fotografia aos 15, 16 anos”, diz, recordando que “fazia fotos tipo passe para a Foto-Lisboa de Esmoriz que era de um tio meu”.
“Ambiente Imagens Dispersas – Encontro de Fotografia Cidade de Ovar”
A “Ambiente Imagens Dispersas – Encontro de Fotografia Cidade de Ovar” é um evento organizado pelos Amigos do Cáster. Este evento aglutina em Ovar autores e trabalhos de fotografia enquadrados essencialmente no tema “Natureza e Vida Selvagem” mas também se serve da investigação científica no domínio da conservação da natureza para estímulo ao trabalho fotográfico, vídeo e outras expressões artísticas. É composto por um concurso cujos vencedores já são conhecidos, um ciclo de conferências, duas exposições e uma oficina de fotografia de natureza e uma oficina de educação visual e ambiental dirigida a estudantes das escolas de Ovar.
Carlos Ramos, dirigente da Associação Amigos do Cáster, refere que “sempre quisemos os melhores dos melhores e também sempre quisemos valorizar o melhor dos ovarenses”. “O Mário Lisboa foi a pessoa certa para atingirmos esse objectivo”, assinala o dirigente.
Texto: Luís Ventura (in Diário de Aveiro)