Jogadoras dizem que Ovarense disfarça desigualdade de género com argumentos financeiros
Atletas da equipa feminina da Ovarense Basquetebol acusam o clube de discriminação de género ao obrigá-las a renunciarem à Liga para poupar 23.000 euros, desvalorizando quem “fez história” no clube para manter as mais dispendiosas formações A e B masculinas.
Esse é apenas um dos exemplos de discriminação apontado à Associação Desportiva Ovarense Basquetebol, que, no seguimento de várias atitudes “menos corretas” ao longo dos anos, formalizou em junho a já há meses antecipada descida de divisão das mulheres quando ainda a 30 de abril defendera em comunicado público que a equipa feminina “fez história ao atingir a Final Four da Taça de Portugal” – muito graças ao desempenho das gémeas Gabriela e Ana Ipinoza Raimundo, reconhecidas pela Liga e pela Federação Eurobasket como “Most Valuable Players Portuguesas” respetivamente na época 2018/2019 e na 2019/2020.
Das 15 jogadoras da equipa sénior feminina, 11 já confirmaram a sua saída do clube e, a avaliar por quatro basquetebolistas entrevistadas, isso deve-se, por um lado, à consciência de que “ficar na Ovarense era aguentar mais do mesmo, sem evolução na carreira”, e, por outro, à despromoção “totalmente injusta e desmotivante”.
Além das gémeas, de saída também está Sofia Pinheiro, que atribui a decisão sobretudo à necessidade de apostar na sua vida profissional como psicóloga. Bárbara Calvinho ainda está a equacionar o que fazer, mas admite que, “com toda a gente a sair”, não se vê “a ficar numa equipa só com atletas juniores” enquanto a masculina continua a fazer sucessivas contratações de americanos.
As quatro jogadoras têm uma média de 24 anos, medem todas cerca de 1,6 metros de altura e começaram por falar em tom suave sobre uma situação que “até se compreende” como medida para ajudar à sustentabilidade de um clube que a direção diz em “muito débeis condições financeiras”, mas o relato vai ganhando a intensidade da revolta à medida que, “agora que já não há nada a perder”, elas listam tudo aquilo que dizem demonstrar como ao longo dos anos foram sendo “desvalorizadas enquanto atletas e pessoas”.
A síntese é difícil, mas Gabriela dá o primeiro passo: “Para começar, nem nos deram oportunidade de arranjar pelos nossos meios os 31.000 euros que custa ficarmos na Liga. Podíamos ter feito um ‘crowdfunding’, por exemplo, e se calhar até arranjávamos mais do que isso, para ajudar o clube nas contas gerais”.
Ana acredita, contudo, que essa hipótese “não interessava” à direção. A avaliar por diferentes comentários nas redes sociais e à mesa dos cafés locais, há mais quem concorde com ela: várias pessoas alegam que “as finanças do clube foram só uma desculpa para despachar as raparigas”, no que a expectativa seria que elas “se chateassem e saíssem da equipa, para assim a direção não passar por má da fita”.
De início, Sofia mostra alguns pruridos em reconhecer “desigualdade de género a sério”, mas, à medida que compõe o historial de casos práticos em que essa discriminação se foi evidenciando, essa reserva vai-lhe passando. “A única coisa em comum com a equipa masculina é o emblema do clube, porque verbas, logística, regalias, apoio, não havia nada disso para nós”, garante.
Diferenças relativamente aos jogadores homens são várias e contam-se a quatro vozes, gradualmente mais contestatárias: a equipa feminina, que estava na Liga há sete épocas, não tem equipamento de treino e pratica com as suas próprias roupas; o clube assegura a lavagem dos equipamentos masculinos, “mas a roupa das mulheres têm que ser elas a lavar”; só na presente época é que as raparigas tiveram direito a um balneário próprio, mas esse continua “sem cacifos, enquanto os rapazes sempre tiveram os deles”; mesmo com balneário, as mulheres são obrigadas a evacuá-lo quando chegam os B masculinos, “para eles não incomodarem os outros homens da equipa A”; nos jogos deles há assistentes para “limpar o chão mal um atleta cai e levam-lhe gelo se fizer uma lesão, mas para as mulheres não há nada disso”; e, além de claques e “cheerleaders”, a direção dá aos homens “mais tempo de antena na comunicação e nas redes sociais, com ‘InstaStories, contagens decrescentes e anúncios a que as raparigas não têm direito”.
Bárbara é a mais reservada das quatro basquetebolistas, mas sobrepõe-se às colegas perante uma memória concreta: “Um dia eu sofri uma entorse, estava numa maca à espera de ser vista pelo fisioterapeuta da equipa masculina e ele deixou-me à espera porque tinha que preparar fruta e bolachas para a equipa dele. Estava eu ali com dores e ele, à minha frente, a cortar as maçãzinhas em tirinhas e a preparar as bolachinhas para os meninos”. Parece piada? “Pois, mas não é. E para nós também nunca ouve frutinha. Mesmo a água, durante muitos anos éramos nós que a levávamos de casa ou íamos beber à torneira”, recorda a jogadora.
Fisioterapeuta e preparador físico são, aliás, luxos exclusivamente masculinos, já que na formação feminina são as próprias jogadoras que se substituem a esses profissionais, quando acontece estudarem nessas áreas. Mas mesmo esse percurso universitário não é valorizado, como Sofia defende ao contar que os homens tinham sempre melhores horários para treinar, embora quase todos residissem em Ovar, enquanto elas viam recorrentemente negados os pedidos para praticar mais cedo e chegar menos cansadas às aulas.
“O treino era das 21:00 às 22:30, chegávamos a casa às 23:30 e às 07:00 estávamos a pé outra vez pra apanhar o transporte para a faculdade no Porto ou em Aveiro”, revela a jogadora que vive em São João da Madeira, a uns 30 quilómetros de Ovar. “No fundo, houve uma série de coisas que nós fomos deixando andar e não devíamos”, reconhece Ana, antes de a irmã lhe completar o raciocínio: “Aproveitaram-se da nossa bondade e ingenuidade, do nosso gosto pelo clube”.
Haveria mais para incluir na lista, mas Gabriela, Ana, Bárbara e Sofia concordam na síntese: “Castigaram-nos por um buraco financeiro para o qual não contribuímos e pelo qual fomos as mais prejudicadas. As duas equipas seniores masculinas ficam muito mais caras do que nós e, mesmo com seis ou sete jogadores americanos, não têm resultados melhores do que os nossos. Não fazemos grandes saltos nem afundanços? Ok, temos um físico mais pequeno, mas fazemos um jogo muito mais bonito, mais inteligente e elaborado”.
As atletas até admitem que o que se passa na Ovarense “é reflexo da cultura nacional”, mas esperavam do Desporto valores mais altos: “Em vez de nos dispensarem, deviam é apontar-nos como exemplo de luta e resiliência”.
Por Alexandra Couto