Furadouro, 1965: Maria Barroso escreve a Mário Soares, preso em Caxias
Instalada num hotel Mar e Sol, na praia do Furadouro, onde decorriam as filmagens do filme “Mudar de Vida“, de Paulo Rocha, Maria Barroso escreveu ao marido, Mário Soares, preso em Caxias devido ao caso Delgado.
Mário Soares, que viria a ser primeiro-ministro e Presidente da República, constituíra-se advogado da família do ‘general sem medo’, assassinado pela PIDE, em 1965, ano em que esta carta foi escrita:
«furadouro, 14 de setembro de 1965
meu muito querido mário,
cá regressei ao trabalho que estava fazendo, como sabes, desta vez acompanhada do joão. levámos cinco horas de caminho porque eu vim – ao que parece e me disseram depois – pelo caminho mais longo. creio que é muito mais curto vindo por coimbra. aliás, se conseguir aí ir 5.ª feira, vou verificar, cronometrando-o, o tempo de cada um deles.
o joão faz-me uma bela companhia porque já é um homenzinho, tal como a nossa querida isabel que se porta como uma senhorinha em lisboa, segundo dizem.
estou desejando acabar isto para poder regressar à nossa casa onde tanta falta faço.
parti de casa hoje às 7,30 mas já deixei tudo o que me tinhas pedido arranjado para ser levado a caxias. deixei todas as instruções à isabel nesse sentido e por ela soube, esta noite e telefonicamente, que só se podem levar coisas nos dias de visita.
um dos livros que me pediste eram as lições de processo civil, mas eu encontrei apenas, do mesmo autor um manual de processo civil – seria o que querias pedir ou fui eu que não consegui encontrar e não soube, portanto, procurar? depois mo dirás, sim, para eu desfazer o engano, se efectivamente tiver havido engano.
o tempo aqui em cima está mau. em lisboa estava calor mas aqui todo o dia esteve um nevoeiro denso, que aliás era necessário para certas cenas.
estou a escrever-te já deitada e no silêncio da noite. como não tenho sono aproveitei para te escrever e depois deixar-me-ei estar a ler até adormecer. vou já no 3.º volume da obra da beauvoir – é realmente uma obra notável pela sua coragem, pela sua sinceridade, pelo que revela de profunda inteligência, poder de observação e espantosa cultura duma mulher. lê-se com um prazer e um interesse verdadeiramente excepcionais.
bem, meu querido, não quero alongar-me mais hoje. amanhã voltarei para conversarmos.
beijos do joão.
para ti sempre os beijos mais ternos da muito tua
maria de jesus»
In Álbum de Memórias de Maria Barroso, publicado pelo Semanário Sol.