Faleceu Rui Resende, o vareiro que só sabia jogar por “amor à camisola”
Futebolista, folião e reiseiro, faleceu aos 90 anos
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Foi o futebol a sua primeira paixão. Jogou na Ovarense e, mesmo após pendurar as botas, Ovar nunca mais saiu de dentro dele. Foi futebolista, folião e reiseiro, as três principais tradições vareiras, e assim ajudou a moldar o ser vareiro.
Nasceu em Angola, mas a mãe era do Sobral, tal como o seu avô paterno. “O meu pai veio a Portugal casar com a minha mãe, regressou a Angola e lá estivemos até aos meus 12 anos”, recordou ao OvarNews em entrevista.
Um pouco antes de Rui completar o seu 12.º aniversário, o irmão mais velho teve meningite, ficando paralisado do lado esquerdo. “Os médicos disseram aos meus pais que ele teria mais possibilidades de se recuperar se fôssemos para Portugal e uma semana depois estávamos a embarcar para nos instalarmos em Ovar onde tínhamos família”. “Felizmente, o médico tinha razão”, sorriu.
Em terras vareiras, a família lá se organizou sempre com a ideia de voltar a África, e o Rui foi estudar para o Colégio Júlio Dinis, no Curso Comercial, só que, pouco tempo depois, o pai morre subitamente na sequência de uma cirurgia e os planos de regressar foram postos de lado. “Ficámos por aqui e eu empreguei-me na Sociedade Mercantil, onde o meu tio era gerente, saltando depois para o F. Ramada”, mas já lá vamos, porque esta mudança já está relacionada com o futebol.
Rui Resende adorava o futebol e jeito não lhe faltava, tendo iniciado muito jovem a prática da modalidade, em 1951. “Comecei a jogar na Ovarense aos 15 anos, mas com uma autorização expressa do Governo, por ser tão novo”.
“Ovarense era um luxo”
As memórias fluem e os olhos brilham. “Lembro-me perfeitamente de termos ido jogar com o Sporting de Espinho, lá, onde marquei dois golos e ganhamos por 3-0”. Outra recordação: “Um dia, o Feirense veio fazer um jogo-treino connosco e dos jogadores aparecerem de camisola interior e calções rotos, ao passo que nós éramos um luxo”. “Hoje, olho para eles e penso que foram mais vezes à primeira divisão do que nós à segunda”. Observando, com mágoa: “Um clube que não tinha nada e nós ríamos deles…”
Quando completou 16 anos, “o treinador Pereira foi ver-me jogar e apesar de me achar franzino mandou-me aparecer nos treinos dos seniores e eu assim fiz, começando a jogar na equipa principal e nas reservas, claro”.
Foi então que o Sporting cedeu o jogador Manolo à Ovarense. “O Manolo só vinha no dia do jogo e o Pereira metia-me a treinar durante a semana no lugar dele, a extremo-direito, muito embora eu tivesse jogado a interior esquerdo nos juniores”.
Um certo domingo, o Manolo não apareceu e o treinador meteu-o no onze. “Foi assim que comecei a jogar na equipa principal da Ovarense com apenas 17 anos”.
Quando estava a dar nas vistas, aos 18 anos, foi chamado à inspecção e obrigado a cumprir serviço militar, primeiro em Tavira, depois em Mafra e a seguir em Coimbra, “pois estava já destinado para jogar na Académica”.
Rui queria continuar estudar e, se possível, seguir Medicina na Universidade de Coimbra. “Mas o meu curso era comercial e não dava para ciências”. Esteve dois anos na Académica de Coimbra após o que regressou a Ovar, ao F. Ramada, onde tinha emprego garantido.
A Associação Académica de Coimbra
Rui Resende optou então pela Académica, mas lembra-se de que “tinha recebido convites do FC Porto, onde fui prestar provas e gostaram muito de mim. Mandaram-me voltar, mas eu tinha visto o treinador a dar um abanão num jogador, tive medo e nunca mais fui”.
Choveram ainda convites do Boavista, do Sporting, do Belenenses, entre outros, “só não tive do Benfica que era para onde eu gostava de ter ido (risos). Ia até de borla se fosse preciso, porque na Ovarense joguei sempre de graça”, revela, em tom sério.
Aquelas duas épocas na Académica, em 1955/56 e 1956/57, foram a excepção, já que só envergou a camisola alvi-negra da Ovarense, terminando aqui a sua carreira nos finais da década de 1960. Não sem antes ser agraciado, em 1965, com a medalha de comportamento exemplar pela Federação Portuguesa de Futebol por ter efectuado 201 jogos, 67 dos quais a nível nacional, sem qualquer punição.
Contribuiu também para que a ADO alcançasse o campeonato distrital de 1954/55 e fez parte da integrante da gloriosa época que levou a Ovarense à 2.ª divisão nacional, em 1964/65, jogando sempre de forma desinteressada pelo clube vareiro. Foi sempre amador e mesmo quando foi obrigatório profissionalizar-se, chegou o fim do mês e não recebeu nada. “O José Castro, que era dirigente na altura, pediu-me desculpa, que não havia dinheiro e eu respondi-lhe que não havia nem era preciso haver porque eu não queria dinheiro nenhum”.
Nunca recebeu nada e mesmo os prémios das vitórias dava-os ao “António do Campo” para ele lhe comprar uns calções ou umas chuteiras de vez em quando. “Joguei sempre por amor à camisola”, repete.
Na Ovarense, jogou exercendo simultaneamente funções de diretor, prolongando este vínculo depois de pendurar as chuteiras.
“Era muitas vezes o melhor em campo”, recordando com saudade esses tempos em que o “Ruizinho”, diminutivo por que era conhecido, e o Toninho Canhoto, eram os melhores marcadores e apareciam no jornal. “Mas eu nunca guardei nada”.
Desde que a Ovarense começou a cair que Rui não ia ao velhinho Marques da Silva. Mas naquele sábado de 2017 em que foi homenageado ganhou coragem e, emocionado, viu como “está tudo muito modificado”. “Parece que, graças a Deus, vai subir de divisão, mas sem apoios é tudo mais dificil”.
Os Cantar dos Reis
Adriano Almeida que com ele privou na tradição reiseira, só tem boas lembranças: “Rui Resende era um bom homem, que dava sempre bons conselhos e gostava de ver toda a gente feliz”. “Dono de uma voz singular, emocionava qualquer humano ao cantar as “Avé Marias” ou “Granada”, entre outras, e que tantas vezes acompanhei”.
Vibrava com o desporto, com o Benfica, com a Ovarense. E era um folião nato do Carnaval de Ovar.
Nas noites mais frias a “Cantar os Reis” trazia sempre no bolso do casaco a poção mágica (Esgromosh) para aquecer e afinar as gargantas da troupe do Orfeão (acho que nunca ninguém soube que mistura alcoólica era aquela, nem como se escrevia o seu nome, mas que era bom era!). Isto é só um pouco do Sr. Rui que eu conheci e que me vai deixar saudades. Muito mais há para contar, muitas histórias, muita vida bem vivida e também sofrida. Ovar deve-lhe muito!
O Carnaval de Ovar
Fez parte de várias comissões de Carnaval, com o irmão Valdemar, esteve ligado a vários grupos, comos os Levados do Diabo, mas foram os Não Precisa que deixaram uma mensagem para ele neste dia triste:
“Foste embora, mas o teu sorriso e a tua alegria ficam sempre connosco!
Os Não Precisa nunca te esquecerão!”
Futebolista, Folião e Reiseiro, Rui Resende faleceu esta quinta-feira, aos 90 anos.
Texto: LV com fotos de arquivo