Covid-19

Doces – Henrique Gomes

 

Havia uma perfeita harmonia entre a festa e a lua: ambas em crescendo e iluminando a noite. O Torrão do Lameiro, engalado, teve direito a uma aragem tépida e a um considerável número de visitantes. Boa Viagem, a santa festejada, deveria estar satisfeita.

Degraus plantados em forma de socalco serviam de bancada a um público em moderada expectativa- a vedeta de Rádio TV e Disco iria atuar mais tarde. A mediática senhora com nome de cidade capital já registava algum atraso em relação ao horário previsto para o início do show. Dela e das suas bailarinas, entidades sempre a ter em conta.
Por agora, Doces e doces- um desconhecido grupo musical cativava a atenção dos espectadores. Entre as músicas entoadas destacavam-se algumas do reportório das ex-sexy simbols Doces.

Os cantores pareciam siameses: magricelas, pequenotes, estreitos. Embora de aparência frágil eram destros, ligeiros e desenvoltos nos movimentos. Eles, com vozes pouco trabalhadas, lá iam cantando, intercalando com duas desiguais senhoras- uma loira, ou querendo parecer loira. Bem composta, peito firme e coxa tentadora. A outra, morena, coxão e peito em abundância e proeminência. Ambas de gesto fácil, solto e entrosado. Elas eram executantes elegantes e sensuais.
Se as músicas já eram conhecidas de há muito tempo as bailarinas nem por isso. Talvez fosse o gosto pelo desconhecido que fez concentrar tantos olhares e comentários masculinos nas meninas. Elas, muito sincronizadas, iam executando um vasto número de movimentos- rodopios, pontapés no vazio, agitar de ancas e vénias recorrentes. Com palmas, elas faziam um apelo à participação de um o público mais taciturno e expectante do que colaborante.

Pequeno intervalo na atuação e eis que ressurgem os dois cantores que parecem irmãos acompanhados por uma nova bailarina. Ela é grande! Mesmo grande demais para a roupa que veste. Esta nova bailarina exibe, entre outras coisas, meia tatuagem ao nível da coxa e cria a grande dúvida da noite: Como será o resto da tatuagem que o residual vestido insiste tapar ao nível da coxa alta? Curiosos, alguns homens aproximam-se do palco. Observam,mas parecem permanecer com dúvidas. Persistentes, observam e analisam de novo.

Solidário com aqueles homens, miro a parte visível da tatuagem mas a distância que me separa do palco não ajuda nada na resolução do enigma.
Inconclusivo! Ficará a dúvida para sempre até porque a bailarina foi entretanto substituída pelas duas anteriores. Elas regressaram revigoradas e com outras vestimentas mas mantendo a anterior desenvoltura. A música que já foi de samba retorna ao reportório Doces.
Doces, também, eram os aromas que chegavam dos tradicionais pontos de venda que sempre marcam presença nestas romarias- churros, farturas, algodão doce, pipocas eram a outra tentação para além das bailarinas.
E tinham pretendentes, os doces. Miúdos e graúdos faziam um cerco às bem iluminadas roulottes. Para os mais pequenos doses gigantes de doçaria. Para os mais graúdos, doses mínimas de cerveja.

Alguns miúdos pareciam desaparecer por entre os novelos de algodão doce para rapidamente reaparecer pigmentados no rosto por manchas esbranquiçadas. Mais depressa acabava o doce do que o atravessar em dialogal do reportório das Doces feito pelo aquele grupo musical.
O deflagrar de fogo-de-artifício assinalou a minha partida das festividades: acompanharam-me a dúvida da tatuagem e o lamento de não ver a vedeta de Rádio TV e Disco.

Henrique Gomes (texto e foto)

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