Criação… – por Sérgio Lamarão Pereira
Todo o gesto de criação, todo o olhar e pensar para além de… é, ou pode ser, claramente, um gesto de viagem. Uma procura pelo traço mais perfeito, o som mais nítido, a frase mais completa, numa busca inquieta e intranquila da nossa própria imagem, da nossa própria existência. Uma procura de mim, do outro que sou «eu» mesmo. Se por um lado somos racionais, por outro somos sensibilidade. É o complemento entre ambos e a tensão entre os mesmos que nos afeta, que condiciona o nosso quotidiano e as nossas ações.
Arte, a mais bela manifestação do Homem. Intelectualidade e sensibilidade no seu grau mais elevado. Imitação, criação pura e abstrata, beleza, sublimação, grau de abstração que nos toca profundamente. Poesia e pintura. Patamar onde o Homem deixa de lado a materialidade e executa todo um trabalho em que depende apenas do seu estado de espírito. Onde se criam outros mundos, outras realidades e outras vidas. Todo um rol de manifestações que deixam transparecer para o exterior tudo o que de mais íntimo existe no interior de cada um. Experiências de vida, beleza contemplada, frustrações, tristezas, ilusões, alegria e êxtase.
Tudo o que nos rodeia é um quadro, uma pintura, um universo cheio de mundos. É vida, é escrita. Poesia que consegue o mais elevado recolhimento. Aquele momento único que não foi preparado, aquela silhueta breve e eloquente. Aquele rosto eterno que se perpetua, a pele que une dois mundos, ambos harmoniosos.
O que nos move é também a própria ideia de movimento. O movimento da Terra, a curiosidade, a procura, a vontade que nos chama num ritual constante e frenético. Todo um mecanismo intrínseco a nós próprios, como se a Terra criasse uma necessidade de procura. Esta procura que nos atira para o abismo do ser, essa música que nos toca, essa letra que nos seduz, esses juízos que se formam numa procura constante de um belo idealizado por nós próprios.
Tento criar o meu mundo, a minha representação, a minha obra de arte. Eu que me vou tentando conhecer a mim próprio, o meu complexo mundo interior debaixo de uma calma aparente. Eu que não consigo olhar para mim próprio sem a ajuda de um espelho. Eu que tento perceber cada gesto nos outros, cada olhar numa multiplicidade fragmentada de sentidos e de movimentos. É esta ociosidade dionisíaca, esta vontade de romper com o estabelecido, esta força criadora por oposição à calma, à claridade, à ordem e à proporção apolínea, que proporciona esta viagem. Esta tensão entre a liberdade humana criadora e a tirania da razão.
Quero viver, partir, explorar. Existir é partir e deixar tudo para trás, num passado que ressurgirá neste ciclo de vida. Poderá ser escrever para ninguém ler, falar para ninguém ouvir, olhar para ninguém ver. Caminhar. Com os olhos da mente seguir esta estrada que não sei onde me leva. Recusar tudo o que me ofende, tudo o que me oprime, tudo o que me fere. Viajar até onde a minha mente permitir, até onde a reflexão me levar, neste mundo, nesta vida onde me tenho apenas a mim e à minha alma.
Sou um acontecer estético neste quadro que é a vida, neste palco que é o mundo, nesta reflexão que sou eu mesmo.
Ovar, 05/10/2020