Clara d’Ovar nasceu há 95 anos
Se ainda estivesse entre nós, Clara d’Ovar teria feito 95 anos no passado dia 4 de novembro. Leolina Clara Gomes Dias Simões de seu nome verdadeiro, filha de Manuel Dias Simões e de Margarida Ferreira Soares Gomes Dias Simões, nasceu em Ovar, na Rua Padre Ferrer, n.º 1, e residiu, durante a sua infância, na Quinta que a sua família possuía no lugar de S. Miguel. Ela é tão-só e apenas uma das figuras mais enigmáticas do cinema português dos anos 60, encontrando-se praticamente esquecida na terra em que nasceu em 1925.
Clara sempre teve o apelo da arte e abandonaria os estudos para rumar a Lisboa com 19 anos, onde acabaria por se tornar secretária/correspondente de francês e português na empresa Inter-Maritime et Fluvial et Centrados Reúnis.
Nestas funções ou em similares, viveria, nos anos seguintes, em Paris e Locarno. O casamento com o cônsul da Suíça em Luanda (Rolland Pièrre) levou-a à capital angolana, onde viveu pouco mais de um ano. Voltaria a Paris, onde abriu um pequeno restaurante português, “Le Fado”, uma das primeiras casas de fado parisienses, onde conheceu muitos artistas franceses ligados ao cinema, nomeadamente Françoise d’Orléac, Jean Cocteau ou Fernandel.
Carlos Pereira, jornalista e director do Lusojornal, recorda Clara d’Ovar também enquanto fadista e, sobretudo, proprietária desta casa de fados de Paris, “que foi importante há dezenas de anos, mas não teve a descendência que merecia na capital francesa”. “Clara abriu o caminho, mas hoje, Paris não tem, mas precisaria de ter, uma verdadeira Casa de Fados”, diz Carlos Pereira.
A sua estreia no cinema aconteceu em 1959, quando conseguiu um papel de protagonista no filme “Merci Natercia”, conhecido em Portugal como Uma Portuguesa em Paris, de Pierre Kast. Muito sumariamente, a trama do filme, assinada pelo próprio Kast e por Peter Oser, desenvolve-se em torno da personagem de Clara d’Ovar que dá título ao filme, uma viúva rica que ajuda um aspirante a cineasta a realizar o seu primeiro filme. Ignorando o facto de Clara não ser viúva e de Kast não ser um estreante, havia algumas semelhanças entre a ficção e a realidade, uma vez que a produção do filme era assegurada por Clara d’Ovar e pelo então marido Peter Oser, um elemento do clã Rockefeller.
Fracasso quase total, o filme não estrearia em França e só estrearia em Portugal cinco anos depois, comprometendo as suas aspirações profissionais: tentou ser actriz principal em La Barque Sur l’Ocean (1960), de Maurice Clavel, e em Cartas da Religiosa Portuguesa (1960), de António Lopes Ribeiro, mas os dois projectos acabariam por não ser concluídos. O reencontro com Pierre Kast seria determinante para relançar a sua carreira: em 1961 conseguiria um papel como figurante em La morte-saison des amours, de Pierre Kast. O filme consolidaria a relação entre Clara d’Ovar e Pierre Kast, que se intensificaria nos anos seguintes, com proveitos para ambos. Apesar de ter integrado a geração da nouvelle vague, e de também ter feito carreira como crítica na prestigiada Cahiers du Cinéma, Pierre Kast (1920-1984) nunca alcançou uma posição de destaque no cinema francês, ainda que tenha começado a carreira com uma curta co-realizada com Jean Grémillon [Les charmes de l’existence (1949)] que até venceu um prémio em Veneza.
Nos anos seguintes, Clara d’Ovar envolver-se-ia num promissor e complexo triângulo profissional com António da Cunha Telles e Pierre Kast de onde resultariam várias co-produções, particularmente Vacances portugaises/Sorrisos do Destino (1962) e o seu elenco de luxo: Catherine Deneuve, Françoise Arnoul, Bernhard Wicki, e Jacques Doniol-Valcroze (também co-argumentista). Na direcção de fotografia, nada menos que Raoul Coutard, o mítico fotógrafo de À bout de soufflé (O Acossado, 1960) de Godard, Lola (1061) de Jacques Demy, Jules et Jim (Jules e Jim, 1962) de Truffaut, entre outros títulos fundamentais da nouvelle vague. Creditados como produtores, surgiam os nomes de Cunha Telles, Clara d’Ovar e Peter Oser.
Mas, seguramente, a parte mais proveitosa do negócio terá sobrado para Cunha Telles, que assegura a produção associada de La Peau Douce (Angústia, 1964), o filme de Truffaut parcialmente rodado em Lisboa, produzido pela Films de Carosse e SEDIF, e com isso uma inédita exposição mediática internacional para um produtor português. Em início de carreira, acabado de lançar Os Verdes Anos (1963), com Belarmino (1964) em rodagem e a preparar as primeiras longas de António de Macedo [Domingo à Tarde (1965)] e José Fonseca e Costa (Anjo Ancorado, nunca concretizado). Como cereja no topo do bolo, Cunha Telles ainda juntou ao seu curriculum uma brevíssima figuração nesse filme de Truffaut e viu-se referenciado na Cahiers du Cinéma (III-1964: 41-42), num texto intitulado «Lettre de Lisbonne» escrito por Pierre Kast, em que anunciava a “nouvelle vague portugaise”, como um dos cinco portugueses “unis comme les doigts de la main“ (unidos como os dedos de uma mão) – Paulo Rocha, Fernando Lopes, José Fonseca e Costa, Manuel Guimarães e António da Cunha Telles – que “aiment un ainé, Manuel de Oliveira“ (amavam um ancião, Manoel de Oliveira).
Quem também beneficiou desta ligação foi Zéni d’Ovar, o fadista irmão de Clara que, além da cantar o fado no seu restaurante, também iniciou uma carreira cinematográfica sob o patrocínio de Cunha Telles: seria segundo assistente de realização de António de Macedo em Domingo à Tardee em As Ilhas Encantadas (1965), do luso-descendente Carlos Vilardebó; e ainda decorador em Mudar de Vida (1966), de Paulo Rocha.
Quanto a Clara, teria um prémio de compensação: seria a protagonista de Clara d’Ovar em Óbidos (1965), uma curta-metragem turística de três minutos realizada por Fonseca e Costa e produzida por Cunha Telles. Mais substancial seria a sua participação em O Crime de Aldeia Velha (1964), o regresso do veterano Manuel Guimarães agora com a produção de Cunha Telles.
Em 1965, Clara d’Ovar regressa a Portugal para interpretar Thérese, uma das personagens de Poly au Portugal, uma série francesa de 7 episódios criada por Cécile Aubry e realizada por Claude Boissol que foi rodada no Ribatejo e seria exibida pelo canal francês ORTF. Contanto as aventuras e desventuras de uma égua de nome Poly, esta série francesa foi um enorme sucesso de audiências em França, tendo sido produzidas 9 temporadas (1961-1973), entre os quais uma ambientada em Portugal (4.ª), uma em Veneza (7.ª), uma em Espanha (8.ª) e outra na Tunísia (9.ª).
Quando esta série estreou na televisão francesa, a 30 de Setembro de 1965, Clara d’Ovar viaja para o Brasil para participar no Festival do Rio, integrada na delegação portuguesa – com Isabel de Castro, António Lopes Ribeiro e Manuel Félix Ribeiro – na qualidade de produtora da curta-metragem La brûlure de mille soleils (1965), que foi realizada por Pierre Kast, montada por Chris Marker e co-produzida por Anatole Dauman, o mesmo produtor de Chronique d’un été (Paris 1960) (1961) de Jean Rouch e Edgar Morin, Valparaíso (1964) de Joris Ivens, Masculin féminin (Masculino Feminino, 1966) de Godard, Mouchette (Amor e Morte, 1967) de Robert Bresson e das primeiras longas-metragens de Alain Resnais.
Como actriz, Clara d’Ovar participaria em mais três projectos: um papel secundário Le Grain de Sable/O Triângulo Circular (1965), ambos de Pierre Kast; uma participação no projecto inacabado Os Caminhos da Verdade, realizado por Michel Ribó; e Le Soleil en Face (1980), novamente com Pierre Kast, uma comédia dramática com banda sonora de Sérgio Godinho. Por concretizar, ficaria o sonho de ser realizadora, uma vez que o projecto Sombras no Firmamento, um filme de ficção científica com argumento de Chad Olivier e realização partilhada de Clara d’Ovar e Pierre Kast, seria abortado. Gorada a carreira cinematográfica, Clara d’Ovar apostaria na sólida carreira de fadista e também na de escritora, publicando diversos livros a partir de meados dos anos 60: Um Mundo Paralelo (1966) e Areias Movediças (1968).
Para além de actriz, Clara fez da tapeçaria a sua pintura e escreveu poemas que publicou em volume: “Caminhando Pela Vida” (1994) e “Poesias do Vento”, ou em vários periódicos locais e nacionais (“Notícias de Ovar”, “Século”, “Capital”, “República”, etc).
Produziu também ensaios, contos – “Um Mundo Paralelo” (1966) -, crónicas e romances: “Areias Movediças” (1968), “Miriam – Uma Tão Longa Estrada” (1997), “Odisseia de uma Garrafa Azul – Memórias e Esquecimentos”. Em 13 de dezembro de 1999, apresentou, na Sociedade de Geografia (Lisboa), o romance “D. Juan Quixote de Saia de Folhos”. No ano 2000, publicou o romance “O Homem que corria atrás dos Sonhos”.
Faleceu em 30 de junho de 2002, em Lisboa, não sem antes lançar o livro de poemas “O Voo das Palavras”.
Em Ovar, em 2009 foram instalados dois bustos de Clara d’Ovar, um junto ao supermercado Modelo (actual Continente Bom Dia) e outro no Jardim de São Miguel (imagem em baixo), mas ambos desapareceram pouco tempo depois e nunca mais foram repostos, apesar de promessas nesse sentido.
Filmes de Clara d’Ovar
1959 – “Merci Natercia”; “Uma Portuguesa em Paris”, de Pierre Kast.
1960 – “La Barque Sur l’Ocean”, de Maurice Clavel; “Cartas da Religiosa Portuguesa”, de António Lopes Ribeiro.
1961 – “La Morte-Saison dês Amours”, de Pierre Kast
1962 – “Je ne Suis Plus d’Ici”, de Bernard Vicki (curta-metragem filmada numa aldeia próxima de Ovar).
1963 – “Vacances Portugaises”, “Os Sorrisos do Destino”, de Pièrre Kast; “PXO”, de Pièrre Kast, Jacques Doniol-Valcroze e António Vilela; “Le Pas de Troix”, de Alain Bornet.
1964 – “O Crime da Aldeia Velha”, de Manuel Guimarães.
1965 – “Le Grain de Sable” (O Triângulo Circular), de Pierre Kast; “La Brûlure de Mille Soleils”, de Pièrre Kast.
1980 – “Le Soleil en Face”, de Pièrre Kast
Obras literárias de Clara d’Ovar
1956 – “Um Mundo Paralelo”
1957 – “Poesias da Juventude”
1958 – “As Areias Movediças”, “Poesias do Vento”
1994 – “Caminhando pela Vida”
1997 – “Miriam – Uma Tão Longa Estrada”
1998 – “Odisseia de uma Garrafa Azul – Memórias de Esquecimentos”
1999 – “D. Juan Quixote de Saia de Folhos”
2000 – “O Homem que corria atrás dos Sonhos”
2002 – “O voo das Palavras”
Fontes consultadas:
http://mulheresilustres.blogspot.com/
Radioalfa.net
noticiasdeovar.blogspot.com
https://www.apaladewalsh.com/
Ovarmemórias (Facebook)