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“Casas na Duna”: Leitura obrigatória neste verão

O cenário era de quase epopeia primitiva, com grandes barcos de aguçada proa levantada recolhidos entre palheiros de tábua pintada a cores escuras, com a capela do Senhor da Piedade (que em 1766 substituiu minúsculo oratório de madeira) a coroar em pedra e cal o fio do horizonte para quem chegasse de Ovar pela Estrada do Mar, cinco quilómetros de boa sombra debaixo de frondosos choupos. Como se esquece isso?

Mais do que quaisquer outros, Granja e Espinho haveriam de ser modelo para estâncias balneares emergentes nessa extensa linha de costa, com os seus pequenos hotéis ou hospedarias, mas quando por ali passou em 1864, para o seu roteiro das Praias de Portugal, Ramalho Ortigão reduziu o Furadouro a uma linha e meia: “O Furadouro e a Costa Nova, frequentadas por algumas famílias de Aveiro e seus subúrbios”. A “moda dos banhos de mar” por um número cada vez maior de crentes nas propriedades terapêuticas da água salgada fazia-se em Setembro e Outubro, um tradicional período de repouso após as colheitas, na vizinhança das comunidades dos “operários do mar” que aos olhos das famílias ociosas recolhiam redes, desventravam, descamavam peixe e salgavam-no ali no areal que era extenso.

Também movimentavam gado de tracção, deixando na praia os seus dejectos, resíduos e pestilências piscícolas e bovinas que os ventos de Noroeste típicos do Verão espalhavam incomodamente. Noutros tempos também aquelas comunidades piscatórias haviam sido residentes sazonais no Furadouro, porquanto “no Inverno a pesca era transferida para os esteiros da Ria” de Aveiro e os pescadores moravam na Arruela e no Lamarão, entre outros lugares típicos da vila de Ovar.

Domingos Tavares descreve com a sua habitual minúcia e informação sustentada — verdadeiro trabalho de relojoeiro mecânico — toda essa vida laboriosa e pitoresca (que outrora serviu de motivo a pintores como Joaquim Lopes ou João Vaz) para concluir que “os palheiros dos pescadores ajudam a explicar a evolução formal para o urbano, no quadro da nova economia balnear”, e num panorama mais geral, nunca perdido de vistas pelo autor, que “a contaminação parece assumir, muitas vezes, o papel principal no progresso das artes”.

O chalet foi um “meteorito vanguardista”, desafiando o mar como um semi-deus, meio betão, meio madeira. O professor emérito da Faculdade de Arquitectura da Universidade do Porto fala da história deste lugar de pescadores feito a partir do que resta dos seus antigos modos de habitar numa das zonas da costa portuguesa mais afectadas pela erosão costeira.

O esforço do homem para conter a força do mar é bem visível, embora adiado nas últimas décadas, deixando o Furadouro à mercê dos humores das marés.

Pouso de pescadores de cana em riste, na esperança de um robalo fresco, os montes de pedra cumprem, com dificuldade, um papel ingrato: proteger a audácia dos que, conhecendo o Atlântico, insistem, há séculos, em fincar aqui aos seus pés.

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