“Até por mim mesmo já me fiz passar”: Retrospetiva da obra de Arlindo Fagundes

A Biblioteca de Alcântara – José Dias Coelho recebe, a partir do dia 15 de Maio, a exposição “Até por mim mesmo já me fiz passar – Unidade e diversidade na obra plástica de Arlindo Fagundes”. Conhecido hoje sobretudo pelo trabalho que desenvolveu na ilustração, Arlindo Fagundes era um artista que se manifestou de múltiplas formas, através de várias disciplinas: da cerâmica à banda desenhada, passando pela ilustração, o desenho e a pintura.

A escolha do meio para a variedade de peças, dizia Arlindo Fagundes, tinha que ver com “a diversidade dos materiais e tecnologias”, mas também com a “motivação” que presidia “à sua feitura”. O conjunto que agora se apresenta, uma retrospetiva que recupera obras de diferentes épocas, tem, porém, elementos que lhe conferem uma óbvia coerência: as obras demonstram o seu gosto confesso pela “bonecada”, e o humor, ironia e irreverência que marcaram não só o seu percurso artístico, mas também a sua postura política e social.
Em “Até por mim mesmo já me fiz passar” é possível ver algumas das peças de cerâmicas mais marcantes do percurso de Arlindo Fagundes enquanto ceramista. O elefante, o árbitro, a freira e o padre são apenas alguns exemplos do trabalho que encarava como sendo o de “um artesão” e que, atualmente, se encontram em museus nacionais e estrangeiros.
Autor multipremiado de banda desenhada, o artista plástico defendia que se tratava de uma forma artística ao nível do teatro, do cinema, da música e a literatura. Por não gostar de heróis com profissões nobres ou super-heróis, fez “algo que fosse o reverso da medalha da banda desenhada histórica que se tem feito em Portugal”, segundo explicou em entrevista. Foi desta vontade de contar a “história dos degredados, dos que se passaram para o outro lado, dos ‘malditos’” que nasceu Pitanga, um barbeiro de luxo a domicílio, que viria a tornar-se um dos heróis mais carismáticos da BD portuguesa. Pitanga foi, no primeiro volume, colega de António Variações, que aceitou o desafio através de uma carta que se mostra nesta exposição, ao lado de pranchas e estudos das personagens.
Ilustrador, a obra de Arlindo Fagundes está presente em milhares de casas portuguesas: foi o autor, durante mais de 40 anos, das ilustrações da coleção “Uma Aventura”, de Isabel Alçada e Ana Maria Magalhães. Participou ainda noutros projetos de literatura infanto-juvenil. Na Biblioteca de Alcântara vão estar expostos estudos sobre as personagens do universo de Uma Aventura, mas também ilustrações menos conhecidas e trabalhos em desenho, alguns deles de uma surpreendente minúcia.
A diversidade da obra de Arlindo Fagundes desdobra-se ainda em cartazes – da festa do Avante no Alto da Ajuda à Festa da Alegria, em Braga – e na pintura, com a qual mantinha uma ligação que vem do tempo em que frequentou a Sociedade Nacional de Belas Artes de Lisboa, entre 1963 a 1967. É deste período a obra mais antiga desta exposição, o seu autorretrato, anterior ao exílio em França. Apesar de ter realizado duas exposições, o artista plástico nunca se considerou pintor: os quadros aproximam-se muito de desenhos e refletem a maior paixão de todas, a banda desenhada e o cartoon.
Com curadoria de Maria Augusta Lima Cruz, a exposição “Até por mim mesmo já me fiz passar – Unidade e diversidade na obra plástica de Arlindo Fagundes” conta com o apoio da Câmara Municipal de Lisboa e das Bibliotecas de Lisboa. Resulta de uma iniciativa da família e amigos de Arlindo Fagundes. Pode ser visitada até ao dia 14 de junho de 2025.

Arlindo Terra Fagundes nasceu a 3 de julho de 1945 em Ovar. Após os estudos secundários no Liceu Camões, em Lisboa, teve os primeiros contactos com as artes gráficas, trabalhando nas agências de publicidade Hora e APA, enquanto frequentava os cursos de desenho e de pintura da Sociedade Nacional de Belas Artes. Em 1965, foi admitido na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, cujo curso de Pintura viria a abandonar por motivos políticos. Durante o seu exílio em Paris, de 1967 a 1974, diplomou-se como realizador de cinema em 1973 no Conservatoire Libre du Cinéma Français.
Neste período, participou também ativamente na publicação do jornal O Grito, em defesa dos presos políticos portugueses. Regressado a Portugal após o 25 de abril de 1974, trabalhou como colaborador externo para os estúdios do Porto da RTP, realizando três curtas metragens (Reserva Integral, Gerês – a Bela Adormecida, Maria da Fonte). Em 1975, fixa-se em Braga, reativando a Olaria Ágata na Vila de Prado (Vila Verde). O seu envolvimento com a cerâmica resultaria numa das etapas mais marcantes e produtivas da sua vida, sem o impedir, no entanto, de manter-se ativo noutras áreas das artes plásticas. Foi também professor e formador nas áreas de fotografia, artes gráficas, cerâmica e comunicação desde 1978, em várias escolas, destacando-se a Escola Calouste Gulbenkian e a Escola Profissional de Braga.
Em 1982, abraçou o projeto de ilustrar a coleção Uma Aventura da editorial Caminho, com 67 volumes publicados até à data, que o tornaram uma presença regular junto do público juvenil. Em 1985, estreia-se, finalmente, na banda desenhada, criando o barbeiro/herói Pitanga com a sua primeira aventura, La Chavalita.
Embora desde muito jovem se tenha dedicado à pintura, só em 1996, com a exposição individual “As Voltas que o Mundo Dá”, na Galeria do Museu Nogueira da Silva em Braga, tornou pública esta sua atividade. Realizou duas incursões na Escultura, o busto-retrato de António Variações (2004) e o busto-retrato do Padre Armando Lira (2005).
De destacar, por último, a sua atividade como cartoonista em vários periódicos nacionais, assim como a de autor de cartazes, desde os anos 1970. Desenhador incansável, deixa um importante espólio de trabalhos inéditos ou inacabados.
Faleceu a 9 de Janeiro de 2025, em Braga.