Ainda estou aqui – Por Raul Almeida
Casas cheias de livros, como casas que conheci em miúdo.
Gente comprometida, como gente que conheci em miúdo.
Mães coragem, olhando pela casa, pelos filhos, enquanto o marido pagava o preço de pensar em parte incerta, em condições incertas.
Códigos, gestos discretos, conversas clandestinas.
A mesma classe média alta, instruída, inconformada, que trocava o conforto pelos princípios.
São os militares brasileiros, mas podia ser a PIDE ou o COPCON.
É um engenheiro bem estabelecido de Ipanema, mas podia ser um preso da PIDE ou o Sr. Abraão que o COPCON trouxe a correr para morrer em casa.
Fernanda Torres, magnífica no desempenho, lembra-nos permanentemente o Jack Lemmon pela mão do Costa Gavras em Santiago.
Ipanema aparece sem a luz que lhe conhecemos, os dois irmãos quase ameaçadores, vigilantes; a despreocupação carioca desaparece rapidamente, como as ilusões da infância.
Este filme, para além de uma peça cinematográfica excelente, é um reminder de um tempo que não passou há mais que escassos anos; lá, cá, em tantos lugares. É um manifesto imprescindível no tempo actual, em que a memória se apaga em face da engenharia da mentira.
Sim, hoje Copacabana, Ipanema e o Leblon já não são bairros onde se possa deixar a porta no trinco e em que as crianças brinquem despreocupadamente na rua, mas não façamos confusão por um segundo que seja, não há preço que se possa pagar pela liberdade, pelo pensamento, pela diferença, pelas palavras.
Raul Almeida