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Hugo Correia: “O meu sucesso é dedicado à minha mãe”

Hugo Correia tem 34 anos, é natural de Ovar, esteve ao serviço do Marselha, em França, e agora abraça novo desafio na Aspire Academy que trabalha com as Seleções do Qatar.

Depois da passagem por emblemas nacionais, de onde se destaca o Sporting de Braga, em Portugal, e o clube histórico francês, Olympique de Marseille, onde era responsável pelo departamento de prevenção e reatletização, atualmente, trabalha na área da preparação física das Seleções jovens do futebol do Qatar.

Porque escolheu a área do Desporto para a sua formação? Quando percebeu que era esse o caminho a seguir? 

Quando era atleta na A. A. Avanca, clube próximo da minha cidade natal, recordo-me de ver o preparador físico trabalhar com a equipa sénior. Lembro-me perfeitamente de pensar “era uma profissão que eu me veria a desempenhar“. O teste de orientação profissional que realizei com a psicóloga da escola apontava, indubitavelmente, para o Desporto como área de maior interesse e, portanto, a tomada de decisão foi fácil e natural.

Foi o responsável pelo departamento de prevenção de lesões e reatletização de atletas na academia do Olympique de Marseille. Quer falar-nos sobre a sua função. Que tipo de ação tinha no seu departamento?

As principais funções do departamento, que tive a honra de liderar, 1) realização das diversas avaliações ao longo do ano, nomeadamente de força, de salto, sprint linear, sprint curvo e mudança de direção; 2) trabalho de força preventivo individualizado, complementar ao trabalho de força, potência e técnica de corrida que todos fazem. Resumidamente, défices de força relativizada (ao peso corporal do atleta e braço de momento da força aplicada), assimetrias bilaterais e assimetrias agonista-antagonista exageradas são alertas para que atuemos de forma regular no sentido de trabalhar sobre a debilidade de cada indivíduo; 3) reatletização (reathletization) de sujeitos com lesão. Por outras palavras, sobrecargar de forma progressiva e ótima os tecidos lesados, assim como também desenvolver as componentes atléticas capazes de permitir que o atleta volte à competição (se possível) na sua melhor versão.

Quais são os maiores desafios que enfrenta um departamento que se dedica à prevenção de lesões e recuperação de atletas?

Os atletas jovens de elite são ativos do clube e, quando bem trabalhados, podem dar um incremento significativo ao rendimento desportivo, assim como podem trazer dividendos financeiros importantes. Para isso, devem ser cuidados. Mas sabemos que tudo o que queiramos aplicar, em termos de carga, de forma aguda, pode ser causador de fadiga adicional, o que poderá comprometer componentes essenciais do treino (nomeadamente das competências técnico-táticas). Por outro lado, sabemos que alguns treinadores, por acreditarem que apenas a componente técnico-tática é suficiente para a preparação do jogador, procuram colocar imensos entraves a práticas eficazes, que têm um largo corpo de evidências quanto à sua aplicação. Em conclusão, creio que o maior desafio ao nível da prevenção de lesões será a capacidade de ter aceitação e conseguir aplicar, sobretudo, um trabalho de força significativo, capaz de criar adaptações (ao invés de realizar simples e pequenas sessões de “ativação”, em que a carga, muitas vezes, é insuficiente para criar adaptações). Já ao nível da reatletização, creio que os maiores desafios são os de passar a informação de forma constante entre os diferentes elementos (atleta, staff médico, staff técnico, nutricionista, etc.) e também ter um conhecimento significativo sobre a área médica (conhecer os diferentes tipos de lesões musculares, articulares, mecanismos de lesão, fases de progressão, etc.).

No período anterior à sua chegada a Marselha passou vários anos na academia do Sporting Clube de Braga, o chamado quarto grande do futebol português. Que principais diferenças encontrou entre as academias dos dois países?

De forma geral, em termos de cultura, nós, portugueses, somos abertos ao mundo e buscamos aprender tudo o que podemos. Não é por acaso que trabalhamos em todo o mundo e nos adaptamos bem a línguas diferentes. Já em França, creio que há uma cultura mais fechada para o que vem de fora (algo que foi várias vezes confirmado por gente que conheci por cá). Ao nível do treino, creio que, em Portugal, temos uma visão de ensino que parte do jogo como referência, em que a compreensão do jogo é elevada desde cedo, sendo que, por vezes, chega a ser exagerada, trabalhando com jovens como se fossem mini-adultos, o que, por vezes, anula componentes importantes, como o treino da técnica individual (que forçosamente depende do empenhamento motor dentro de cada tarefa) ou o trabalho de literacia motora em idades jovens, fundamental e tão ignorado hoje em dia, apesar das evidências atuais em relação aos seus benefícios. Em França, sinto que o ensino é tendencialmente mais repartido no que diz respeito às diferentes dimensões de treino. Felizmente, no contexto onde trabalho, houve uma mudança de paradigma, que faz com que o treino das equipas com quem trabalho tenha uma junção interessante do treino do jogo com a evolução individual de cada atleta. Em relação à minha área direta de intervenção, diria que os atletas têm, talvez, maior predisposição para o trabalho físico e que, aqui, fruto da cultura de futebol do país, há uma incidência extremamente superior de contusões (em treino e jogo), assim como de entorses de tornozelo por mecanismo de contacto. O Qatar é incrivelmente organizado e bastante bonito, limpo e agradável. Aqui, trabalho com gente de todo o mundo (franceses, italianos, espanhois, ingleses, gregos, gente de hungria, belgica, escocia, tunisia, etc.).

Como surge a oportunidade de dar o salto para o Qatar?

Estava no meu ultimo ano de contrato no Olympique de Marseille e como houve algumas mudanças de direção ao nivel de gestão, achei que era o melhor momento para sair. Atualmente trabalho na preparação fisica com as seleções jovens do Qatar, na tentativa de os projetar a longo prazo para a seleção nacional do Qatar. A aposta sob o ponto de vista de investimento, sem dúvida,  brutal. Também é necessário considerar que a população do Qatar é inferior a 3 milhões de pessoas. Logo, para poder ser competitivo a nivel asiático e eventualmente a nivel mundial, não poderia ser de outra forma. Em 2019 e 2023 foram campeões da AFC Asian Cup (em duas edições consecutivas), o que espelha um pouco o crescimento. Aliás, a Aspire Academy fez recentemente 20 anos.

Do tempo de estudante na FADEUP – Faculdade de Desporto da Universidade do Porto, há alguma história que o tenha marcado e que possa partilhar connosco?

Uma das histórias mais marcantes durante esse período foi o falecimento da pessoa mais importante da minha vida, a minha mãe. Havia terminado o primeiro ano de mestrado e estava a preparar o design da dissertação que ia fazer. A 23 de dezembro, perdi a minha mãe, fruto de um cancro do pâncreas detetado cerca de um ano e meio antes. No dia do funeral, tinha tanta coisa para contar sobre ela perante os presentes e não tive coragem para o fazer. Foi o golpe mais duro de sempre e eu fiquei cerca de duas semanas deitado, apenas. Não tinha forças nem vontade de mais nada. Levantava-me para comer, beber e pouco mais… fiquei completamente abalado. Após esse tempo de introspecção, imaginei que ela não iria gostar que eu abandonasse o mestrado e o meu trajeto. Foi então que encontrei o motivo para sair do poço em que me encontrava: estabeleci como objetivo pessoal terminar o mestrado, convidar algumas das pessoas mais próximas, tirar nota máxima na tese e, no final, passar um vídeo em sua memória, que pudesse transmitir o que eu queria transmitir no dia do seu funeral e que não tive coragem para o fazer. Com o apoio do Professor Paulo Colaço, assim o fiz e consegui atingir esse objetivo. Desde então, sei que o meu sucesso é acompanhado por ela e tudo o que farei será dela também.

Qual é a sua maior realização?

Ter chegado ao nível competitivo que ambicionava e ter feito a homenagem à minha mãe, tal como a idealizei.

Como ocupa os tempos livres?

Gosto bastante do Excel, de tropeçar em números e brincar com eles. No fundo, parte do meu trabalho é conhecer os atletas, e olhar os dados sobre diferentes perspectivas ajuda-me bastante a tirar ilações que aguçam a minha curiosidade. Gosto também de ir à praia, conhecer novos lugares, culturas e línguas.

O que espera do futuro?

Continuar a fazer o que gosto, ser valorizado, ter um bom grupo de trabalho, continuar a evoluir e a sentir a mesma sede de conhecimento, não ser escravo do trabalho para continuar a aproveitar a vida, ter uma família estável e, claro, ser pai um dia.

*com:

Fonte
Fadeup
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