… e dos coveiros ninguém se lembra? – Lobo Mau
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando:
Cantando espalharei por toda a parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte.
Luís de Camões
Nota: Trecho do livro “Os Lusíadas” de Luís de Camões
O Camões é um exagerado. Não seria preciso tanto para merecer uma medalha de mérito daquelas que vão dar no Dia do Município. Não é necessário nenhum martírio para alguém libertar-se da “Lei da Morte”. Mas já concordo com o Luís de Camões de que era importante haver uma “obra valorosa”.
Vem isto a talhe de foice porque as redes sociais se espumam pela escolha de Iva Lamarão para pendurar uma dessas medalhas ao peito.
Ponto prévio: Tudo serve para destilar ódio nas redes sociais. A Miss e apresentadora vareira não pediu nada, foi escolhida, porque possivelmente não se lembraram de mais ninguém – vive-se da espuma dos dias e pouco mais.
E se há um ano atrás se atribuiram medalhas aos actores Rui M. Silva e Sérgio Praia por serem… simplesmente bons naquilo que fazem, na profissão que exercem e por aparecerem na TV (o prémio Sophia para o actor de “Variações” surgiria depois). Portanto, se basta ser bom na profissão que se exerce e tal é suficiente para ser elegível e receber uma medalha, por uma questão de coerência, então a Iva também merece esta medalha.
Na SIC, onde trabalha, Iva não só se tem revelado uma excelente (e bela) profissional, como tem feito muita e boa promoção à terra que a viu nascer. As vezes que ela transportou Pão-de-Ló de Ovar para oferecer aos convidados em estúdio representam uma promoção em canal aberto e credível que não tem preço e a tê-lo teria de ser paga com muito dinheiro e nunca atingiria os mesmos resultados.
Portanto, conseguimos vislumbrar na Iva os actos valorosos, algo que a distingue. Mas e os outros?
Já muitos foram lembrados. O Gabinete de Crise então recebe condecorações à velocidade da luz por todos os cantos e esquinas desta terra que, afinal, está outra vez à porta do grupo de Municípios de Risco e a recuar nas medidas de desconfinamento ou lá o que isso for.
Mas há uma profissão que o seu normal desempenho se aproxima, por si só, de um martírio ou de um conjunto de atos de heroísmo. Porque é que ninguém se lembra dos coveiros do cemitério? Porquê? Ninguém se lembra dos desgraçados que, apesar de tão fria sorte de terem esta profissão, desempenharam uma especial responsabilidade social (e sanitária) nesta interminável fase pandémica.
Com os cemitérios encerrados, foram eles, os Operadores de Serviços Cemiteriais, os fiéis guardiões das chaves cuja porta abriram sempre que lhe era solicitado, fosse dia fosse noite. Conheço gente que morreria só de pensar em ir a um cemitério de noite. Agora imaginem o que é levar um morto para lá na noite escura… A sua profissão difícil mais complicada se tornou, já que o número de mortes e de cadáveres se amontoaram em números sem precedentes. Se os mortos eram mais do que o habitual está-se mesmo a ver que a sua sorte piorou, mas eles responderam afirmativamente.
Devia haver um sindicato específico dos coveiros. Devia haver um para reivindicar melhor sorte para estes homens que se encarregam de nos enviar para o outro Mundo na maior discrição, sem alaridos ou bicos de pés e sem que ninguém se lembre deles ou do trabalho que executam e que mais ninguém quer fazer. E que também nem parece seja tão bem pago como mereceria. Isso sim, são actos valorosos e de elevar. E, no entanto, ninguém se lembra.
O Lobo Mau
*O Lobo Mau encontra-se devidamente identificado