José Muge, o avô, dedicou quase 50 anos ao Cantar dos Reis de Ovar. Bernardo, o neto, é fascinado por música desde que nasceu.
Em pequeno, Bernardo invadia a loja de discos do avô para tocar em tudo o que produzisse música ou qualquer outro tipo de som. Os Lp’s dos artistas do momento estavam lá todos, mas o que lhe interessava era conviver e aprender com a sua maior referência, o avô José, sobrevivente do mítico Conjunto Oliveira Muge.
Na cidade ainda se encontram casos de gerações de “reiseiros” à semelhança do “pai fundador” da tradição que transmitiu o gosto pelos “Reis” às descendentes Amélia Dias Simões (filha) e Edwiges Pacheco (neta).
Transmissão reiseira
José Muge e Bernardo Libório personificam um desses casos de transmissão de herança reiseira em Ovar. O avô, aos 86 anos, recorda que despertou para a tradição tinha os seus 15 anos e “assistia aos Reis na padaria do meu pai”. Não desdenha que isso tenha desempenhado papel importante na decisão de aprender a tocar guitarra logo que pôde, “porque queria entrar numa troupe e, claro, adorava música”.
Há dois anos que deixou de ensaiar as vozes da Troupe de Reis do Orfeão de Ovar. “Comecei a ter problemas de visão e dificuldades de leitura, o que era mau para os ensaios e então disse-lhes que não podia continuar”. “Depois de cerca de 50 anos a cantar os Reis foi difícil”, confessa, pois “há sempre muito convívio e fazem-se ali amigos para a vida”.
Cantou primeiro em Ovar e após uma estadia em Moçambique, José Muge regressou para retomar o lugar na sua troupe de sempre. “Nessa altura, quem compunha era a Amélia Dias Simões, depois foi o António Redes. Eu compunha para as escolas primárias, em especial a da Oliveirinha”, recorda. “Na primária, eu era sempre solista, não sei porquê…”, interrompe o neto Bernardo Libório, entre risos. Tal como o avô, aos 29 anos, também tem uma vida ligada à música e integra a Troupe do Orfeão de Ovar há quase uma dezena de anos. “Foi o meu avô que me levou para lá e hei-de continuar”, promete Bernardo, convicto.
O avô não esquece que para ensaiar a troupe “era preciso saber bem os temas, porque o António Manuel Redes escrevia tudo e era preciso ler música”. Nos primeiros tempos, além de ensaiar também acompanhava a troupe à viola nas ruas e nas actuações em estabelecimentos comerciais. Hoje sente que o seu legado perdura ao verificar que “o meu neto gosta de estar na troupe”.
Os tempos são outros e a tradição também se foi adaptando. Quando José começou, “só havia mulheres no instrumental, mas acho que vieram ajudar muito”, recorda, ele que teve três filhas e, talvez, por isso, tenha tido que saltar uma geração para encontrar a sua continuidade. “Havia resistência em deixar as mulheres entrarem porque nestas troupes há coisas que são só para homens (risos)”, sustenta José Muge, logo coadjuvado pelo neto cuja troupe mantém a tradição das vozes exclusivamente masculinas: “A gente fica a conversar pela noite fora e elas estão sempre a lembrar as horas…”
A tradição acompanha os tempos e tem evoluído. “É como tudo”, refere José Muge, e diz mais: “A tradição nem sempre é consensual”. Ora veja: “No tempo do António Dias Simões, só podia haver instrumentos de cordas e hoje já se vêem outros. “O contrabaixo era um deles, mas não era fácil de levar a casa das pessoas porque era pesado e optou-se pelo violino”. Muge traz à lembrança o tempo em que as Troupes de Reis pegavam em “músicas da actualidade e as adaptavam com letras novas”. “As melodias eram sempre bem recebidas porque as pessoas conheciam e começavam logo a cantarolar”.
Foi com a chegada do Padre Bastos a Ovar que, “junto do José Maria Graça, que era o responsável do serviço de Turismo na altura, se fez força para que as músicas passassem a ser originais”. José Muge concordou mas reconhece que “embora com isso tenha ganho valor, perdeu na publicidade, porque passou a ser mais difícil de entrar no ouvido”. Mas os Reis foram conquistando terreno na então vila. “Nesta terra, até ao Carnaval eram os Reis que mandavam, as pessoas adoravam e vinham ter connosco a perguntar a letra da tal música”. O avô tem saudades desse tempo em que “as apresentações se realizavam em frente à Câmara Municipal de Ovar e aquilo estava cheio de gente, mesmo a chover estava sempre a abarrotar”.
Juventude e tradição
Entre as quase duas dezenas de troupes que todos os anos se apresentam no concelho de Ovar para cumprir a tradição, José Muge elege a “Tradição e Juventude” como sendo da sua preferência. “Não sei bem se são o futuro mas acho muito interessante o que eles estão a fazer. Mas também posso dizer que é preciso mais trabalho na viola”. “É a troupe que admiro mais, onde tudo é feito por eles, gente nova, com uma certa abertura para outros caminhos”.
O neto salta em defesa da sua “dama”: “Essa é uma comparação difícil de fazer, porque, por exemplo, no Orfeão temos violoncelos, violinos, flautas e os arranjos instrumentais são complicados”, adverte. “Dizer que esta é melhor do que outra, se calhar é porque temos mais conhecimento musical, somos mais exigentes, ensaiamos mais a parte orquestral”. Bernardo entende. “O meu avô ensaiava as vozes e esse cuidado é importante para ter uma certa qualidade e se uma parte da música não está bem, vamos verificar as guitarras e os bandolins para ver o que se passa. Os andamentos têm que ser correctos. Os músicos podem nem estar tão bem, mas as vozes têm que estar afinadinhas. A nossa troupe tem sempre muita exigência”, assevera Bernardo.
José Muge só tem pena que a tradição tenha evoluído em muitos aspectos menos nas apresentações nos estabelecimentos comerciais da cidade. “Temos uma tradição destas que atrai tanta gente e mexe com toda a população e não conseguimos consertar horas nos restaurantes e nas outras casas para receberem as troupes com alguma organização, acabando todos por se atropelarem a certas horas em certas casas. Fazemos muitas reuniões mas não adianta”, lamenta.
O “Cantar dos Reis” sofreu, ao longo dos anos, um processo de codificação artística, social e performativa, adquirindo um recorte cultural próprio, sofisticado ao nível da composição musical e poética, e especializado ao nível da performance. Foram estes e outros motivos que conduziram, recentemente, à classificação a Património Cultural Imaterial de Portugal, tendo sido publicada a inscrição em Diário da República.
“Sinto que ajudei a tradição a melhorar quando andava lá e foi com esse espírito de ajuda que o fiz”, refere José Muge, a propósito da inscrição da tradição na Matriz. Bernardo Libório considera que “agora está imortalizada é um garante de que nunca mais acabará. É também uma responsabilidade mas é mais um alerta para a juventude abrir os olhos para que não se deixe esmorecer esta tradição”.
O neto não deixa de destacar ainda o exemplo dos mais antigos que transportam a tradição até ao limite: “Vemos que ainda há muita disposição dos mais antigos, mesmo em condições complicadas, porque é frio andar na rua, depois entramos numa casa e está quente e depois saímos e está frio e depois quente outra vez. É duro”. Bernardo acredita que os “jovens estão mais predispostos para a tradição e devem senter esse dever” e garante que, apesar deste ano de interregno, pretende continuar “porque fazer a continuidade geracional disto é um orgulho e é muito bonito”.
Luís Ventura in Diário de Aveiro