É para matar o jornalismo de vez?
Há um novo desporto mundial. Ainda não integrou os jogos olímpicos, não se atribuem medalhas aos vencedores, mas é, provavelmente, o que mais praticantes tem vindo a acumular ao longo dos últimos anos. O tiro ao jornalismo é hoje a modalidade mais transversal das sociedades modernas.
“Bater” nos jornalistas virou moda e é viral. Se escreveu isto é porque está a defender o fulano contra o beltrano. Se pensa assim é porque é de direita ou é de esquerda. Se foi publicado neste jornal é porque algum interesse está por detrás. Se passou naquela televisão é porque se trata de uma campanha. O que interessa é abrir trincheiras e combater, “disparar”, contra tudo e contra o seu contrário. Voluntária ou involuntariamente, esta “modalidade” é praticada por muita gente e, muitas vezes, pelos próprios jornalistas.
s novas formas de consumo de informação criaram – erradamente – nos cidadãos a perceção de que todos somos jornalistas. É como se de jornalista e de louco todos tivéssemos um pouco e não é pouco o que este processo está a contribuir para a destruição do jornalismo. As redes sociais há muito que deixaram de servir o propósito com que foram criadas: aproximar as pessoas e facilitar-lhes a comunicação. Elas são hoje um antro de notícias falsas, um palco para o discurso de ódio, um covil de cobardes e de gente mal resolvida que se agiganta numa caixa de comentários.
Os jornalistas e os órgãos de comunicação social transformaram-se numa espécie de bobos da corte, alvos fáceis que acabam por ficar a chafurdar nesta enorme pocilga, em troca do engagement, dos likes, das partilhas e dos comentários, quais pombos desesperados por um punhado de milho, na esperança de que o Facebook os beneficie com o seu algoritmo.
Esta dependência das empresas de comunicação social rima com sobrevivência. Como é que se cria valor a partir do jornalismo? Como é que se ganha dinheiro? A era digital em que vivemos prometia ser uma oportunidade única para reinventar um modelo de negócio – sim, o jornalismo tem de ser economicamente sustentável – claramente em declínio, mas, até agora, os factos desmentem claramente esse sonho.
É verdade que a digitalização dos media abriu novas montras ao jornalismo, aproximou-o ainda mais do público, deu-lhe uma conveniência que não existia antes e isso, em princípio, é bom. É claro que também surgiram novos desafios difíceis de ultrapassar: a velocidade a que a informação corre hoje em dia obriga as empresas de media – e, sobretudo, os jornalistas – a adaptarem-se para conseguirem responder à tal conveniência do público. As multiplataformas que surgem todos os dias obrigam a adaptações tecnológicas e a investimentos, para os quais a esmagadora maioria dos órgãos de comunicação social, claramente, não estavam preparados. Nem sensibilizados. Por falta de capital – a crise nos media já se arrasta há demasiados anos -, mas sobretudo por falta de conhecimento e de visão estratégica.
Ser acionista ou gestor de uma empresa de comunicação social já não é apenas sinónimo de poder, implica perceber que a realidade mudou. Que as redações já não precisam só de paginadores, mas precisam, cada vez mais, de web designers. Que já não basta ter meia dúzia de informáticos que nos formatam o PC quando ele apanha um vírus, mas que agora são precisos programadores, gestores de redes sociais e data scientists. Ser “patrão” de uma empresa onde o principal produto é o jornalismo implica compreender as novas dinâmicas, as novas formas de consumo. Não perceber isto – como muitas empresas de comunicação social em Portugal ainda não perceberam – é não perceber o presente. E o futuro, esse, chegará mais cedo do que imaginam.
Depois é preciso não esquecer o papel do poder político. Inebriado que está pelas novas plataformas de comunicação com o seu eleitorado, acha que encontrou uma forma de contornar as perguntas incómodas e de comunicar sem filtro. Criar regras? Para quê? Regular os gigantes tecnológicos que promovem e ganham dinheiro à custa da desinformação? Com que propósito? Sobretudo quando os exemplos que vêm dos Estados Unidos, do Brasil ou do Reino Unido são claramente inspiradores para os que tinham a obrigação constitucional de defender uma imprensa livre e economicamente sustentável.
Neste contexto, há um outro fator de que as empresas de media, o poder político, o público e, naturalmente, os próprios jornalistas não se podem esquecer: não há jornalismo sem verdadeiros jornalistas. E o jornalismo não se vende a granel, não legitima falsidades, não dá voz a interesses particulares, nem faz fact checks a não notícias. O jornalismo precisa dos mais novos, para quem os dedos só servem para fazer deslizar ecrãs e nunca souberam o que era “martelar” furiosamente as teclas de uma máquina de escrever, mas também dos mais “velhos” que transportam consigo a memória, a cultura e a sabedoria, essenciais para manter a massa crítica que é dos ativos mais importantes em qualquer empresa.
No jornal, na rádio, na televisão, nos sites ou nas redes sociais, independentemente da plataforma, só há um jornalismo capaz de sobreviver: o que é independente, rigoroso, isento, justo, escrutinador e incómodo. Tudo o resto são achas para uma fogueira onde não é apenas o jornalismo que arde. É um dos pilares mais importantes da democracia.
Se é para matar de vez o jornalismo, pois que o assumamos todos. Porque o caminho que estamos a percorrer é dúbio, perigoso e está a criar uma sociedade cada vez mais desinformada e em guerrilha permanente. Eu continuo a acreditar que, um dia, todos nós vamos voltar a precisar do jornalismo para podermos acreditar em alguém, em alguma coisa. Pode até ser uma visão romântica. Mas um dia falamos sobre isso.
Anselmo Crespo
in TSF