Hoje é o Dia Nacional dos Centros Históricos – Paulo Bonifácio
Infelizmente, no Centro Histórico de Ovar, já não é possível contar com a casa do “João da Esquina”, na Praça. Na mercearia do Dácunha, nome pelo qual era vulgarmente conhecido o seu proprietário, António Baptista d’Almeida Pereira, e que foi no romance, As Púpilas do Senhor Reitor, o João da Esquina, era ali que passava Júlio Dinis horas inteiras a conversar e sobretudo… a ouvir. Muitas das cenas presenciadas lhe serviram, por adaptação, para a sua obra.
Quando, no princípio do século XX, nos visitou Antero de Figueiredo, escreveu que em Ovar percorreu uma “rua de casas baixas, brancas, e invariáveis de tipo – porta e janela, porta e janela, portas de almofadas e janelas de bisonhas rotulas – para chegar ao centro da vila… chega-se à praça, centro comercial, burocrático e político da terra, onde há os Paços do Concelho – construção moderna, de farto telhado marselhês, a que tenho de voltar as costas para poder ver uma casa de um só andar, pequena, singela mas que é alguém na terra: a casa do Sr. João da Esquina”.
Esta casa, que a autarquia permitiu que fosse demolida, indo-se ver o que de lá irá sair quando os tapumes desaparecerem, estava repleta de história! Era de toda a conveniência que a sua fachada tivesse sido mantida, não só para que esta parte central da grei vareira mantivesse a sua identidade, mas, também, por todo o simbolismo a ela associado. Para além da alteração da sua volumetria, o enorme manancial de janelas faz antever uma descaracterização do lugar e da sua lembrança.
Quando em Ovar se leram as Pupilas, os vareiros “mataram” à primeira os personagens “João da Esquina”, sua mulher “Teresa de Jesus” e a filha do casal “Francisca”, atribuindo o modelo ao Dácunha, Dona Margarida Baptista d’Oliveira Zagalo, sua esposa e Dona Maria Baptista d’Almeida Zagalo, filha do casal. Ora nesta casa nasceu o grande benemérito Dr. Francisco Zagalo, a quem Ovar deve a sua Misericórdia, nasceu, igualmente, e nela morreu, o Dr. Zagalo dos Santos, grande historiador da nossa história local.
Esta comparação entre o comerciante Dácunha e a sua família, com as personagens das Pupilas, em 1955, mereceu ao Dr. Zagalo dos Santos o seguinte comentário:
“Passa por axioma que determinada pessoa era, sem tirar nem pôr, o retrato do João da Esquina. A não ser que o autor do romance fosse dotado de um carácter menos digno do respeito alheio, – que é injustiça aceitar, capaz de tirar por terceiro, uma desforra que lhe não incumbiram, nunca poderia ter sido aquele o visado, o modelo do ridículo. Na verdade, pouco mais do que analfabetos, ele e sua mulher possuíram dois espíritos superiores, considerados por todos os seus conterrâneos. Ele foi uma das mais vigorosas inteligências da sua terra e do seu tempo. A mordacidade viva, desconcertante dos seus ditos, o emprego apropriado dos seus conceitos e juízos fizeram-no respeitado, temido e acatado. Não queremos fazer a sua reabilitação, por motivos que não interessam já a quem nos ler, mas a justiça que mereceram a todos os títulos. Um homem daquela estrutura moral e mental, jamais estava ao alcance de uma cópia fácil embora por um artista de talento superior.”
O Dr. Zagalo dos Santos, pretendeu desta forma, sem nunca revelar o grau de parentesco e sem sequer fazer referência ao terceiro elemento, filha do casal da Esquina – Francisca, dissipar, aquilo que em Ovar era desde há muito, uma certeza. É que a menina Francisca, do romance, era nada mais, nada menos que a senhora sua mãe, a quem se referia mui respeitosamente como Dona Maria Baptista Zagalo dos Santos. O Dr. António Baptista Zagalo dos Santos era neto materno e afilhado do casal Dácunha!
O Centro Histórico de Ovar está mais pobre, cada vez mais descaracterizado, os elementos Dinisianos desvanecem-se e este ano a Câmara Municipal de Ovar assinala o dia, através de uma visita guiada e encenada “História e contos de uma Vila Oitocentista”, cujo itinerário terá início no Museu Júlio Dinis.
Paulo Bonifácio
28.03.2016